Entrevista a Ana Margarida Dias da Silva técnica superior no Arquivo do Departamento de Ciências da Vida, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

 

(Archivoz) Tem-se debruçado sobre os arquivos portugueses e sua difusão em meio digital. Como vê este panorama?

(Ana Margarida Dias da Silva) A realidade dos arquivos portugueses em meio digital tem diferentes níveis, desde aqueles arquivos que conseguem ter página própria, presença nas redes sociais, catálogos on-line atualizados, e aqueles que nem página de Internet conseguem ter. Depois há questão da missão de cada arquivo e que tipo de documentação/informação produzem e salvaguardam, se têm de ter em atenção questões relacionadas com a divulgação de dados pessoais e dados sensíveis ou não. Por um lado, temos os arquivos históricos, sobretudo os arquivos distritais e uma boa parte de arquivos municipais cujas edilidades têm centenas de anos de existência. Para estes, disponibilizar conteúdos on-line, comunicar informação a um público genérico, fazendo uso das redes sociais ou das páginas dos municípios é mais fácil. Depois temos a realidade dos arquivos que trabalham para a gestão diária das organizações e cuja preocupação primeira é ajudar na tomada de decisão e, portanto, não têm essa necessidade, ou prioridade, de comunicação com exterior.

 

(Archivoz) A sua experiência é muito rica e diversificada, entre arquivos religiosos, municipais, pessoais e universitários. Isso dá-lhe uma grande visão do mundo arquivístico em Portugal, de que forma o encara?

(Ana Margarida Dias da Silva) Não sei se me dá “uma grande visão do mundo arquivístico em Portugal”, dá-me, pelo menos, e isso sim, uma visão dos arquivos da cidade de Coimbra (cidade onde nasci e onde trabalho) e um termo de comparação entre as realidades dos arquivos privados e dos arquivos públicos nesta minha cidade. Que, curiosamente, não considero assim tão diferentes. Acho que fui quase sempre chamada para trabalhar nos arquivos porque era preciso “encontrar um papel”! Mas em todos eles acabei por estabelecer relações laborais, de confiança e amizade que se prolongaram no tempo, muito para além do “encontrar o papel”. Porque em todos os sítios eu lutei pela “descoberta” do arquivo como um todo, na sua relação com o restante património e/ou área de negócio da instituição em causa e na sua importância quer para a tomada de decisão, quer para a investigação e preservação da memória. Em todos eles encontrei traços comuns: arquivos colocados em locais não ideais, a expressão “arquivo morto” até eu conseguir mostrar as potencialidades “vivas” dos arquivos e sempre pessoas preocupadas em preservar o património arquivístico.

 

(Archivoz) Num dos seus recentes artigos abordou os projetos de ciência cidadã em acesso aberto como uma não-realidade em Portugal. Pode-nos explicar este seu ponto de vista?

(Ana Margarida Dias da Silva) Foi um trabalho realizado em co-autoria com a colega e amiga Luísa Alvim, com quem tenho trabalhado diversas vezes e que também se interessa por estas matérias. Os dados recolhidos para o artigo revelaram uma não-realidade: se são poucos os projetos de ciência cidadã realizados por arquivos ou utilizado documentos de arquivo, ainda menos são aqueles que depois disponibilizam os dados em acesso aberto. Verificámos que a ciência cidadã ainda não entrou como método de trabalho junto dos arquivos e dos arquivistas. Tem-se dado prioridade nacional à digitalização que, se permite a consulta de documentos/informação em qualquer ponto do globo, 24 horas por dia, sete dias por semana a quem tenha acesso a um computador ligado à Internet, na maioria dos casos é uma mera transferência de suporte que não acrescenta informação. Porque não pedir ajuda aos cidadãos e à sociedade para introduzir metadados? Para auxiliar na descrição? Para colocar pontos de acesso? São válidas as queixas dos arquivistas de falta recursos humanos e financeiros. Há que ter criatividade, ser criativo para ultrapassar esses constrangimentos de falta de recursos nos arquivos. Há muitas plataformas gratuitas e de fácil utilização que ajudam a desenvolver projectos de ciência cidadã, e também existem projectos a nível internacional e nacional que podem ajudar com boas práticas. Sou muito a favor da ciência cidadã no meio arquivístico como forma de agilizar o acesso à informação, que nem sempre é possível apenas com uma imagem digitalizada colocada on-line.

 

(Archivoz) A nova realidade do crowdsourcing em arquivos é também uma evidência no nosso meio arquivístico?

(Ana Margarida Dias da Silva) É uma realidade que conheço pior, mas que me parece pouco valorizada pelos arquivos. Tal como nos casos de ciência cidadã, considero a sua validade e a sua mais-valia, sobretudo quando nós arquivistas nos queixamos (e com razão) de falta de recursos humanos e financeiros. Penso que basta um bom projecto, um projecto que envolva a comunidade e as comunidades, para que outros comecem a aparecer. Talvez um pouco como o que o Museu de Arte Antiga tem feito.

 

(Archivoz) Como premiada com o prémio Arte de Ler, da Universidade de Coimbra, em 2011, como encara o futuro da paleografia no nosso país onde este tipo de formação praticamente desapareceu dos currículos dos cursos de ciência da Informação? Vamos esperar que a inteligência artificial venha a fazer o mesmo que os nossos olhos fizeram durante séculos?

(Ana Margarida Dias da Silva) Em primeiro lugar, lamento muito a exclusão da Paleografia, e das outras ciências históricas (hoje em regime de cadeiras facultativas, quando as há), dos curricula dos cursos de Ciência da Informação porque considero que são ferramentas essenciais para a formação dos profissionais da informação. Em segundo lugar, também não compreendo a redução drástica da carga horária da Paleografia que, por exemplo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra está reduzida a um semestre, muito diferente dos dois anos que tive aquando da minha licenciatura na mesma faculdade, realizada entre 1999 e 2003. E esta opinião fundamenta-se na perceção de que há ainda uma grande parte de arquivos ou instituições em Portugal que salvaguardam e detém documentação manuscrita. E também considero que, em determinados concursos para determinados arquivos, saber paleografia é uma mais-valia.

Eu fiz parte da equipa do Projecto TraPrInq – Transcrever os processos da Inquisição Portuguesa (1536-1821) que teve como objetivo a programação de um modelo de transcrição automática para manuscritos portugueses. O facto de saber Paleografia foi crucial para fazer parte da equipa. Alguns colegas e amigos estranharam como era possível estar num projecto que me “ia tirar trabalho”! E, se inicialmente havia relutância da minha parte em utilizar a IA na transcrição de manuscritos, rapidamente me tornei fã! Nos primeiros dois modelos fiz a transcrição manualmente, no terceiro modelo resolvi utilizar a transcrição automática e aí apercebi-me da sua vantagem: torna o processo mais rápido, quase automático (demora alguns segundos, dependendo da mancha escrita na página). De paleógrafa tornei-me corretora, revisora do texto. No entanto, também concluí que é e será sempre necessária mão humana para melhorar a transcrição automática e para corrigir as transcrições realizadas pela máquina. É um modelo que pode ser utilizado por qualquer arquivo ou instituição com manuscritos entre os séculos XVI e XIX, mas se os arquivistas não souberem Paleografia, o trabalho não ficará completo e corrigido. Ou seja, a IA é uma grande e excelente ajuda neste campo da Paleografia Digital, mas não substitui o paleógrafo.

 

(Archivoz) Na sua muito recente tese de doutoramento intitulada “O sistema de informação Jardim Botânico da Universidade de Coimbra: perspetiva sistémica e visão holística da informação” optou por um estudo sistémico, na linha do Professor Armando Malheiro e da Professora Fernanda Ribeiro, pode contar-nos um pouco desta sua experiência?

(Ana Margarida Dias da Silva) A perspetiva sistémica e visão holística da informação propostas pelo Professor Armando Malheiro da Silva e da Professora Fernanda Ribeiro é um marco na formação académica, é incontornável falar em Silva & Ribeiro em qualquer ciclo de estudos. Eu lancei a mim mesma o desafio de aplicar a proposta teórica apresentada por Silva & Ribeiro à minha realidade profissional. No fundo, eu queria perceber como é que, na prática, eu podia aplicar a componente teórica proposta por Silva & Ribeiro. Como o meu trabalho no Arquivo de Botânica da Universidade de Coimbra me proporcionou matéria suficiente para múltiplas questões, avancei então com a tese “O sistema de informação Jardim Botânico da Universidade de Coimbra: perspetiva sistémica e visão holística da informação”. Foi uma experiência interessante e desafiante, foi preciso compreender muito bem os conceitos de “informação” e de “sistema”, caso contrário não os conseguiria aplicar ao meu objeto de estudo. No meu campo de estudo e trabalho, os arquivos científicos, neste caso de botânica, considerei que é aplicável a perspetiva sistémica e a visão holística da informação porque permite a compreensão integral e integrada dos processos de conhecimento e dos fluxos informacionais. Nos resultados, apresento um Modelo de visão sistémica e holísitca da documentação/informação do SI botânica da UC que pode ser replicado por todas as áreas do conhecimento. O modelo demonstra como um/a mesmo/a documento/informação está contido/a em múltiplos suportes, mas que se relacionam e que só em conjunto permitem o conhecimento integral e integrado sobre determinado objeto e/ou assunto. Posso afirmar que foi uma experiência complexa, mas gratificante porque me permitiu sair da zona de conforto (a de arquivista) e “transformar-me” em cientista da informação.

 

Entrevistado

Ana Margarida Dias da Silva

Ana Margarida Dias da Silva

Ana Margarida Dias da Silva, natural de Coimbra, é arquivista desde 2004, tem trabalhado em arquivos públicos e privados. Atualmente, é técnica superior no Arquivo do Departamento das Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. É Doutorada em Ciência da Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Mestre em Ciência da Informação e Documentação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A sua dissertação de mestrado “O uso da Internet e da Web 2.0 na difusão e acesso à informação arquivística: o caso dos arquivos municipais portugueses” venceu o 1º Prémio Olga Gallego de Investigación en Archivos em 2015.

Entrevistador

 Alexandra María Silva Vidal

Alexandra María Silva Vidal

Editor de conteúdo, Archivoz Magazine

Chefe de serviço del Archivo de la Venerável Ordem Terceira de S. Francisco do Porto e archivera principal en el Archivo Historico de la Iglesia Lusitana (comunión anglicana de Portugal).

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