Entrevistámos Hermínia Vasconcelos Vilar, Professora Associada com agregação no Departamento de História da Universidade de Évora e Diretora do CIDEHUS – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora.
(ARCHIVOZ) Considerando o seu notável percurso científico, como historiadora, tem estado, de há muitos anos para cá, bastante próxima do mundo dos arquivos. Como é que foi o seu primeiro contacto com esta realidade, que retrato faz, em jeito de retrospetiva, dos mesmos nessa altura?
(Hermínia Vasconcelos Vilar) Tal como refere desde cedo que a minha opção pela História Medieval me conduziu a recorrer a diferentes arquivos de norte a sul do país, dada a escassez de documentação publicada- situação que se mantêm ainda na atualidade – e a inexistência, nos primeiros tempos do meu percurso, de documentação disponível online. Essa experiência permitiu-me contactar com diferentes experiências arquivísticas ou melhor dizendo com arquivos em diferentes fases de organização e com diferentes modelos de acesso.
Devo dizer que tive boas e surpreendentes experiências em alguns arquivos locais que, já nas décadas de 80 e de 90 do século passado, tinham políticas de cuidadosa preservação e inventariação da documentação, em particular, da documentação medieval, já que é essa a que melhor conheço. Apesar das dificuldades e, muitas vezes, dos limites orçamentais e da escassez de funcionários com competências técnicas especificas com que esses arquivos se defrontavam e continuam a defrontar.
Situação que nem sempre se repetiu em alguns arquivos privados que tive oportunidade de consultar. Mas também a este nível têm sido realizados assinaláveis progressos, à medida que tem sido dada uma maior atenção por parte dos responsáveis pelos arquivos privados às políticas de inventariação e de conservação, e por parte dos investigadores e das próprias instituições públicas tem havido uma maior sensibilidade à necessidade de assegurarem a continuidade de muitos arquivos não incluídos, à partida, na órbita pública.
No entanto, muito há ainda a fazer neste campo.
(ARCHIVOZ) Na investigação que fez, subordinado ao tema “A vivência da morte na Estremadura portuguesa (1300 – 1500)”, no Mestrado de História Medieval da Universidade Nova de Lisboa, refere que, apesar do tema se ter revelado, “desde a primeira hora, atrativo e apaixonante, várias foram as dificuldades com que nos deparamos, ao longo da sua elaboração, e, muito especialmente, na sua fase inicial.” Importa-se de especificar a que dificuldades é que se refere, no que respeita ao universo documental existente, e as soluções que teve de desenvolver nesse sentido?
(HV) O levantamento de documentação para aquela que viria a ser a minha dissertação de mestrado iniciou-se na segunda metade dos anos 80 do século XX. Ou seja, há já mais de três décadas. De lá para cá muito mudou, em particular, como já referi na disponibilização de documentação online, tanto portuguesa como estrangeira, na organização arquivística bem como na publicação de documentos.
Devo, contudo, referir que muitas das dificuldades com que me deparei se mantêm e em alguns casos, devo confessar que se agravaram. E explico porque acho que se agravaram.
A minha recolha documental teve como base testamentos redigidos entre os séculos XIV e XV em localidades previamente escolhidas e tendo como base os arquivos de diferentes instituições religiosas preservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tinha na base um questionário então diretamente influenciado pela historiografia francesa e pela temática das atitudes perante a morte. O recurso aos testamentos como fonte base não era novidade na historiografia europeia dos anos 80, embora fosse questionada por muitos nas ilações que permitia, mas era uma relativa novidade em Portugal. Mas essa recolha implicou o manuseio de uma documentação numerosa e dispersa por vários maços, no interior dos quais eu procurava os testamentos, já que nem sempre a documentação oriunda das diferentes instituições religiosas estava inventariada até ao nível do documento.
Tenho dúvidas se uma heurística desta amplitude seria hoje possível em tempo útil. E não falo apenas das inevitáveis restrições que a pandemia implicou na maior parte dos arquivos, mas das dificuldades que rodeiam hoje o acesso à documentação. Dificuldades inerentes aos problemas de preservação da documentação por parte de arquivos cujos orçamentos nem sempre têm acompanhado as crescentes necessidades de conservação de uma documentação numerosa, diversificada nos seus suportes e logo nos cuidados que implica e que não cessa de crescer, colocando novos desafios às instituições.
(ARCHIVOZ) Entre o final de 2010 e 2012 foi a coordenadora científica do projeto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, “O arquivo Histórico do Cabido da Sé de Évora: salvaguarda e difusão da informação”, no âmbito do programa de apoio a projetos de recuperação, tratamento e organização de acervos documentais. Este projeto teve como finalidade o levantamento, inventariação e seriação do acervo documental preservado no arquivo do Cabido da Sé de Évora. Pode dizer-nos quais foram os principais resultados e evidências deste projeto?
(HV) O Arquivo Histórico do Cabido da Sé de Évora é, sem dúvida, um dos mais importantes arquivos diocesanos portugueses em especial no que se refere ao período medieval. Alguns dos seus elementos são, sem dúvida, ímpares e permitem refletir sobre aspetos tão dispares como o processo de constituição das instituições diocesanas, o seu património, a composição sociológica do cabido, mas também sobre as preocupações com a preservação da memória documental de uma instituição como era o cabido de Évora.
Preservado no espaço, belíssimo e sempre impressionante, da Catedral de Évora, este arquivo foi objeto de inventariação, em particular, pelo Padre Carlos da Silva Tarouca que inventariou e publicou o resultado do seu labor.
No âmbito do concurso para Projectos de Recuperação, Tratamento e Organização de Acervos Documentais, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, foi candidatado e aprovado o projeto, intitulado Arquivo Histórico do Cabido da Sé de Évora: Salvaguarda e Difusão de Informação, apresentado pelo Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora (CIDEHUS-UÉ), em parceria com o Cabido da Sé de Évora e que contou com a participação de Fátima Farrica e Francisco Segurado sob a minha coordenação e contou ainda , na fase final, com os contributos de Lígia Duarte, Ana Caeiro e Liliana Silva.
Falamos de um universo documental que cobre um período cronológico que vai desde o século XII até meados do século XX e que compreende centenas de livros e várias dezenas de milhar de avulsos.
Entre outros resultados cabe realçar que este conjunto documental foi reorganizado tendo em linha de conta a identificação de fundos e subfundos documentais distintos, foram criados quadros de classificação específicos para cada fundo, ou subfundo, identificado, foi elaborado um sistema único de cotação de todo o acervo e acondicionaram-se todas as peças em caixas de cartão acid-free. Foi elaborado um inventário geral bem como uma tabela de correspondência entre a classificação feita pelo Padre Carlos Tarouca e a atual.
Penso que o balanço dos resultados deste projeto é muito positivo.
(ARCHIVOZ) Há cerca de ano e meio que foi eleita diretora do CIDEHUS, Centro que inclui não apenas um grupo importante de arquivistas entre os seus investigadores como tem manifestado uma atenção especial ao mundo dos arquivos e contribuído para o desenvolvimento de instrumentos de busca e disseminação da informação. Qual pensa que poderá ser o papel do CIDEHUS neste campo?
(HV) O CIDEHUS assumiu, desde cedo, a área da arquivística e da Ciência da Informação como áreas prioritárias de trabalho e de investigação. É verdade que o fim da fileira de formação em Ciência da Informação na Universidade de Évora ditada pela A3es colocou novos desafios à sobrevivência desta área na Universidade e no CIDEHUS. Contudo, demonstrou-se que esta não se encontrava dependente da fileira de formação, mas tinha autonomia própria.
Da mesma forma, o CIDEHUS investiu desde cedo em desenvolver elementos de apoio à inventariação da documentação disponível em diferentes arquivos e na disponibilização desses mesmo inventários. A Fundis é um bom exemplo dessa política.
Também o CIDEHUSDIGITAL, (http://www.cidehusdigital.uevora.pt) enquanto portal agregador de dados é um exemplo prático desse mesmo interesse que a equipa de investigadores do CIDEHUS tem prosseguido.
Mais recentemente, o conjunto de entrevistas que Paulo Batista, investigador do CIDEHUS, tem levado a efeito com responsáveis de diferentes arquivos é também um exemplo da importância e do dinamismo deste grupo de investigadores e profissionais que integram o Centro. Penso que os próximos tempos trarão novidades a este nível, tanto ao nível de eventos como de desenvolvimento de novos projetos.
Cabe realçar que esta é uma área na qual o CIDEHUS pretende continuar a investir e a colocar no centro do seu programa científico.
(ARCHIVOZ) Na sequência da primeira questão, e considerando a extraordinária experiência que tem como investigadora responsável e coordenadora científica de projetos nacionais, além de ter integrado e coordenado projetos internacionais, como vê o futuro dos arquivos em Portugal e quais pensa serem os grandes desafios que se deparam aos profissionais da informação?
(HV) Penso que os problemas que se colocam hoje aos profissionais da informação são, em alguns casos, aparentemente contínuos. Mas a estes juntam-se novos desafios, não apenas dependentes da conjuntura mais recente e marcada pela pandemia, mas ligados à velocidade e amplitude dos processos de circulação e apreensão da informação.
Um dos problemas está inevitavelmente ligado à suborçamentação, elemento comum a muitos dos arquivos públicos. Ligados ao Ministério da Cultura, sem dúvida que os arquivos não são os únicos “parentes pobres” de uma política com claros constrangimentos ao nível do financiamento da cultura e dos organismos que a ela estão ligados.
Mas a verdade é que os novos desafios que se colocam a estas instituições na preservação de um acervo crescente em dimensão e cada vez mais variado no que respeita aos materiais de suporte, na organização e na divulgação desse mesmo acervo, em articulação com as exigências colocadas ao nível europeu e por algumas plataformas de âmbito europeu, na necessidade de assegurar o rejuvenescimento dos recursos humanos disponíveis, colocam maior pressão nos responsáveis e obrigatoriamente maior responsabilidade na tutela.
Adicionalmente parece-me também crucial existir uma preocupação clara com a formação dos profissionais da informação. Formação que deve articular, como aliás tem vindo a ser feito, as universidades com as instituições e os profissionais “no terreno”.
Num período em que se desenha o novo programa quadro europeu: Horizonte Europa e, ao nível nacional, se discute o Plano de Recuperação e Resiliência, os arquivos e os seus profissionais não podem ser esquecidos. A importância dada à cultura e ao património bem como à formação no quadro europeu podem ser uma boa oportunidade.
Enquanto utilizadora, e é a esse nível que me coloco, penso que os próximos anos poderão trazer novas oportunidades. Mas para tal é necessário que haja participação e interesse das várias partes em presença.
(ARCHIVOZ) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 colocaram novos desafios aos arquivos, obrigando os seus responsáveis e colaboradores a adaptar-se a novas metodologias e formas de trabalhar. Fazendo um balanço desta nova realidade, que se faz sentir desde meados de março de 2020, entende que, em linhas genéricas, os arquivos portugueses foram capazes de se reinventar e dar uma resposta eficaz aos problemas e oportunidades surgidas?
(HV) Sem dúvida que, tal como outras instituições, os arquivos tentaram adaptar-se assegurando o seu funcionamento e o contacto com o público quando possível.
No quadro dos dois confinamentos que já conhecemos a disponibilização da informação por via digital tornou-se ainda mais importante e imprescindível para que o trabalho de muitos investigadores não fosse interrompido e o cumprimento de datas de entregas de provas académicas não fosse, por completo, posto em causa.
(ARCHIVOZ) Por último, caso seja possível, gostaria que nos desse conta dos seus projetos futuros, naturalmente indesligáveis dos arquivos, em termos de investigação, e do CIDEHUS.UE – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, de que é diretora.
(HV) Na sequência do que já realcei acima é objetivo do CIDEHUS apoiar e reforçar a investigação e os profissionais desta área que integram o Centro. Penso que os próximos tempos poderão trazer alguns desenvolvimentos nesta área.
A título individual tenho um conjunto de investigações em curso e que passam pela recolha e análise de fontes documentais, base imprescindível para a investigação em História. Entre esses projetos destaco a publicação da documentação medieval do Arquivo Histórico Municipal de Évora que gostaria de realizar em conjunto com outros investigadores e com o apoio e a concordância do Arquivo Distrital de Évora, onde esta documentação se encontra, e da Câmara Municipal de Évora. Estas duas instituições e o Dr. Jorge Janeiro, diretor do Arquivo Distrital em particular, têm sido incansáveis defensores da qualidade deste arquivo.
Por último permitam-me um desabafo de alguém que tem a História como objeto de trabalho há mais de 30 anos.
Mais do que nunca o trabalho e a investigação histórica são importantes, embora nem sempre a sociedade e os responsáveis políticos o reconheçam. Em particular num quadro de emergência imediata como é este tempo em que vivemos, no quadro do qual os problemas tanto ao nível sanitário como económico tomam proporções inimagináveis apenas há alguns meses atrás.
Mas de novo ou talvez de forma contínua, vemos a História ser chamada a legitimar posições, a fundamentar opiniões, a reforçar o politicamente correto ou tão só discursos de manipulação política. Vemos a História ser mudada ou reescrita, condicionada pelo poder político em diferentes partes do mundo.
Mais do nunca o percurso da investigação, da análise e do discurso histórico é estreito e sinuoso.
Mas mais do nunca ele é necessário, mesmo que nem sempre bem-vindo, porque critico e reflexivo.
E na construção dessa reflexão fundamentada os arquivos assumem um papel central.
Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista