(Archivoz) Gostaria que contasse a respeito da sua formação multidisciplinar (História, Arte e Ciências da Informação) e carreira profissional.

(Marilucia Bottallo) Sou Bacharel e Licenciada em História pela FFLCHUSP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) e essa formação foi fundamental para que eu pudesse ter uma ampla visão de como é importante ter capacidade de análise para compreensão dos processos. Assim que me formei ingressei na Pós-graduação em Museologia oferecida pelo Instituto de Museologia da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Trata-se do famoso curso criado, organizado e gerido pela emblemática museóloga Waldisa Rússio, personalidade absolutamente envolvente, carismática e intensa. Ainda durante o curso ingressei no MAMSP (Museu de Arte Moderna de São Paulo) para trabalhar com a organização e gestão do acervo. Creio que fui a primeira museóloga do MAMSP e lá aprendi, sob os cuidados atentos de Maria Rossi Samora, a bibliotecária-chefe do Museu, muito do que precisava para colocar em prática a teoria que via na formação em Museologia. Foi Maria, profissional extremamente competente e generosa, que insistiu internamente junto à presidência do Museu que era necessário ter uma museóloga para focar nos cuidados com o acervo. Refiro-me ao MAMSP sempre com muita gratidão pois foi, sobretudo, o local que me permitiu aprender e exercitar em praticamente todas as frentes de atuação nas quais um museólogo pode atuar em instituição: gestão da informação, conservação preventiva, organização da reserva técnica, atendimento a pesquisa, montagem de exposições, mediação junto aos distintos públicos… enfim, outros tempos do Museu que me permitiram fazer escolhas e ter o tempo necessário para amadurecer. Depois de um tempo fui para a Pinacoteca de São Paulo onde trabalhei no Serviço de Museologia de um museu estatal com características muito distintas e com uma coleção de belas artes. Em seguida, rumei para Washington D.C. para trabalhar no National Museum of American Art, um dos museus da Smithsonian Institute no qual fiz um aperfeiçoamento profissional trabalhando junto à gestão de processos museológicos. Uma aprendizagem fundamental em termos de compreensão do que significa atuar em sistema e de como os processos são importantes. Quando retornei, voltei para a Pinacoteca de São Paulo, até que prestei um concurso para Documentalista no MAEUSP (Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo). Ali, tive grandes desafios ao ter que lidar com coleções tão distintas quanto, por exemplo, as de arqueologia brasileira cujo processamento é completamente diferente do que se faz com as coleções de arqueologia clássica e, ao mesmo tempo, lidar com culturas vivas junto às coleções de etnologia. Acresce o fato de que o MAE havia sido criado por um decreto que resultou na junção das coleções de quatro instituições distintas que tinham processos de catalogação autônomos. Foi um período muito estimulante e complexo. Paralelamente, fiz Mestrado na ECAUSP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) orientada por Annateresa Fabris, uma das intelectuais mais encorajadoras e, ao mesmo tempo, sensíveis com quem já tive o privilégio de conviver. Me mostrou como se constrói um argumento e como se elabora e desenvolve um projeto de pesquisa. Acima de tudo, respeitosa com nossas escolhas teóricas e metodológicas. Depois de alguns anos na USP, minha inquietude me levou a buscar outros caminhos que me abriram as portas dos arquivos de memória. Passei a coordenar o Centro de Memória Bunge e, ali, impulsionada pelas ações internas ampliei enormemente meus horizontes no sentido de compreender como tratar a informação por meio de sistemas que façam sentido e que respeitem os mais distintos modelos de gestão de coleções. Além disso, as provocações do Dr. Jacques Marcovitch, Presidente da Fundação, permitiram a criação coletiva de uma rede de centros de memória empresarial e as trocas foram riquíssimas nesse sentido. Em seguida, ingressei no programa de Doutorado da ECAUSP orientada por José Teixeira Coelho Netto que me mostrou a importância de desconstruirmos obviedades em busca de novas perspectivas conceituais. Essa aprendizagem levo para tudo o que faço. O processo do doutorado foi muito intenso e me fez refletir sobre nossa responsabilidade como formadores. Teixeira respeitou minha vocação para a docência e me estimulou nesse sentido. Refletindo, aqui, penso que minha formação tem sido bastante coerente com as metas que me propus. Com o doutorado em mãos, fui convidada pela presidência do Instituto de Arte Contemporânea para assumir sua Direção Técnica. Desde então, venho desenvolvendo e aplicando métodos híbridos de gestão das coleções que permitam um acesso amplo às informações. O IAC pratica o colecionismo de arquivos pessoais e isso traz uma série de novas e estimulantes questões para um modelo de gestão entendido como instituto de pesquisa e que, por isso, prioriza o acesso público às informações em várias modalidades.

(Archivoz) No que tange ao seu trabalho com fundos arquivísticos em diferentes instituições custodiadoras de acervos, observou alguns aspectos do tratamento documental e difusão da informação que pudessem ser praticados a partir da convergência dos preceitos da Museologia e da Arquivologia?

(Marilucia Bottallo) É exatamente nessa convergência entre os métodos e processos da Museologia e da Arquivologia que venho trabalhando, sobretudo mais fortemente, pelo menos, nos últimos 10 anos na gestão de arquivos pessoais que estão sob a custódia do IAC. Os processos de documentação museológica em arte são bastante normalizados. Entretanto, a arte contemporânea sempre traz novos desafios e ruptura de paradigmas, seja na maneira como se apresenta ao mundo, seja nos desafios que traz para sua preservação e divulgação. Os museus têm esse papel e, não é muito simples pensar em como dar conta de processos mentais, ações, desmaterializações de várias naturezas e com inúmeras possibilidades sensíveis e conceituais, já que, na sua origem, lidavam essencialmente com cultura material. Encarar as coleções de arte contemporânea e de etnologia me deram um preparo fundamental para o que estava por vir quando comecei a trabalhar os tais arquivos pessoais – ou de memória, ou arquivos de artistas como chamamos no IAC.
Da mesma forma, a Arquivologia tem processos e métodos muito claros e que me trouxeram respostas para alguns obstáculos em termos bem práticos. Portanto, foi nessa interseção que busquei práticas que facilitam, do ponto de vista metodológico e conceitual, o acesso à informação por parte dos pesquisadores. Posso enfatizar que da Museologia mantenho o princípio de abordagem de cada unidade das coleções, e da Arquivologia utilizo alguns métodos referentes à indexação dos documentos. Enfim, parece que tem dado bons resultados se for considerar, como medida, o retorno dos pesquisadores que são meu público-alvo.

(Archivoz) Tendo também realizado trabalhos com fundos arquivísticos institucionais e pessoais, na sua opinião que pontos convergentes e divergentes possuem tais arquivos?

(Marilucia Bottallo) Apesar de atuarmos em áreas essencialmente técnicas, a grande convergência se dá na finalidade principal que é a de acessar as informações e dados relativos às coleções e, claro, a missão primordial da salvaguarda patrimonial. Mas, curiosamente, acho que as distinções (mais do que divergências) são o caminho. Na Museologia, por exemplo, a documentação é parte de um importante aspecto de preservação das coleções e, por isso, foca em uma catalogação exaustiva que visa diminuir a manipulação constante e desnecessária das mesmas. Por outro lado, os arquivos se distinguem muito do trabalho de museus e bibliotecas. Neles, a criação de sistemas, os elementos e práticas de classificação, os instrumentos e o arranjo privilegiam os grupos e as séries e não a unidade. Portanto, nessas distinções aplicadas ao cotidiano da catalogação vejo um caminho possível para lidar com inúmeros modelos de gestão que não se encaixam nos moldes tradicionais.

(Archivoz) Atualmente é Diretora Técnica do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), onde implantou o Núcleo de Documentação e Pesquisa. Gostaria que apresentasse para nós a missão do IAC e, sobretudo, o trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Documentação e Pesquisa com o acervo.

(Marilucia Bottallo) O NDP tem como meta principal viabilizar a preservação da memória e a divulgação da trajetória dos artistas de sua coleção e permitir o relacionamento destes com o âmbito maior das artes no país. Para tanto, implantamos uma metodologia de gestão de coleções que torna disponíveis dados e informações de forma gratuita e irrestrita. Nossos métodos incluem a catalogação das coleções em um banco de dados desenvolvido visando tal fim e que pode ser acessado por meio de sua interface hospedada no site do IAC. Desenvolvemos vários tipos de registros por meio de inventários, catálogos, captura digital de todos os documentos do acervo, além de desenvolvermos pesquisas de campo sobre a vida e obra desses artistas. Além disso, oferecemos formação nas áreas de documentação e conservação preventiva de coleções e damos suporte para organização de exposições internas e externas, curadorias, produções editoriais e orientamos sobre a gestão de risco das coleções, gestão da reserva técnica. Enfim, tudo o que diz respeito às coleções, necessariamente, passa pelo crivo do NDP. Ali, coloco em prática os métodos híbridos de que vimos falando. Esse método inclui a participação de toda a equipe o que, pode não ser o meio mais rápido, porém, é o mais eficaz pois envolve a todos na complexidade e responsabilidade do significa operar a preservação de arquivos pessoais.

Armazenamento e conservação do acervo. Banco de Imagens do Instituto de Arte Contemporânea (IAC).

(Archivoz) Recentemente fizemos uma entrevista com a pesquisadora Adriana Palma*, que dizia de aspectos fluídos presentes na documentação dos artistas, levando a que “papeis”, que seriam obras de arte – e que, por isso, deveriam passar por tratamento técnico específico -, estivessem arquivados junto aos demais documentos pessoais. Em relação aos fundos arquivísticos e coleções com os quais trabalha, observa alguma característica que leva a tal fluidez de compreensão?

(Marilucia Bottallo) Creio que o principal aspecto, no que diz respeito a arte contemporânea e a história da arte em geral, já não é mais possível pensar a construção de uma reflexão sem considerar uma noção ampliada do que venha a ser a arte ou a história ou a própria documentação como método e como registro de processos mentais e processuais. A própria noção de lugares de memória, vinda de Pierre Nora, entende os marcos, monumentos e a cultura material em geral como fontes legítimas para a construção de um raciocínio histórico legítimo. E, na minha visão, isso não se distingue daquilo que convencionamos chamar de ‘obra de arte’. Entendo-a, na verdade, como um residual de todo o processo de criação. Se virmos a maneira como a arte contemporânea se dá ao mundo, essa questão fica muito clara. Creio que essa intelecção, por parte dos pesquisadores, é muito recente, mas crucial, e isso vem ao encontro daquilo que vimos propondo. O IAC, por exemplo, tem obras de arte entre os itens de sua coleção e que, para que façam sentido, são entendidos como documentos – claro que com características especiais – mas que tornam possível sua inclusão naquilo que entendemos como arquivos pessoais e sejam inseridos no sistema de gestão da informação. O método de arquivamento em si já aponta para essa demanda, que é complexa, e exige a ideia mais profunda de um sistema que seja flexível o suficiente para ampliar a noção do que seja documento.

Tratamento do acervo. Banco de Imagens do Instituto de Arte Contemporânea (IAC).

(Archivoz) Sua tese “A mediação cultural e a construção de uma vanguarda institucional (…)”**, que em muito dialoga com o acervo do IAC, a exemplo dos seus estudos sobre Willys de Castro. Nesse sentido, para terminar, poderia refletir os impactos da sua longa carreira com acervos e o desenvolvimento de pesquisas de cunho acadêmico, tanto quanto da tese que desenvolveu e o atual trabalho no Núcleo de Documentação e Pesquisa com tais arquivos e coleções de artistas contemporâneos.

(Marilucia Bottallo) Quando escrevi minha tese, Teixeira me estimulou a pensar sobre um estudo de caso e escolhi Willys de Castro, um de meus artistas favoritos. Tive a grata alegria de usufruir de uma Bolsa Vitae de Artes para trabalhar no inventário crítico de seu arquivo pessoal. Essa circunstância me descortinou muitas questões relativas ao hibridismo que vimos propondo, seja na compreensão do que são arquivos de artistas (ou mais propriamente, pessoais), seja nos métodos que me permitem fazer com que um amontoado de itens, aparentemente dispersos ou desconexos, comecem a fazer sentido a partir do momento em que os inserimos em um sistema coerente. Ao mesmo tempo, tive a alegria de estar próxima de outros profissionais que, como eu, transitam nesse universo dos arquivos pessoais e históricos nos seus cotidianos profissionais. Assim, durante um tempo participamos de um comitê editorial que traduziu para o português uma série de textos e livros de referência na área da gestão de coleções e de informações. Foram cinco diferentes publicações. Além disso, busco compartilhar conhecimento não apenas em eventos, mas por meio de benchmarkings que me possibilitam trocas muito ricas. Creio que, quando se trabalha com documentação primária – e, na verdade, é disso que se trata quando falamos de cultura material e não apenas de arquivos no sentido mais tradicional do termo – o limite entre o trabalho de pesquisa acadêmica e o trabalho com princípios, técnicas, métodos e processos tende a se diluir. Não que haja confusão de papéis ou de processos, mas a convivência com as coleções traz uma certa ‘intimidade’ com a produção dos titulares desses arquivos e com suas formas de raciocínio. Tenho testemunhado o quanto isso é revelador, profundo e sério. A experiência de trabalhar com arquivos pessoais é, nesse sentido, um privilégio.

 

Imagens cedidas pelo Banco de Imagens do Instituto de Arte Contemporânea (IAC).

Marilucia Bottallo

Marilucia Bottallo

Diretora Técnica do Instituto de Arte Contemporânea (IAC)

Diretora Técnica do Instituto de Arte Contemporânea onde criou, implantou e coordena o Núcleo de Documentação e Pesquisa. Coordenadora da Pós Graduação em “Museologia, Colecionismo e Curadoria” do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Doutora em Ciência da Informação ECA/USP, Mestre em Artes ECA/USP e Bacharel em História FFLCH/USP. Museóloga Documentalista especializada em Gestão Museológica, Gestão de Processos e Gestão Institucional.
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