Entrevistámos Adelino Cunha, Professor Associado da Universidade Europeia e Investigador Integrado do Instituto de História Contemporânea da Universidade NOVA de Lisboa.
(ARCHIVOZ) Quando é que nasceu, e em que contexto, a vontade de desenvolver investigação no âmbito dos arquivos políticos?
(Adelino Cunha) Diria que se tratou de um percurso que teve tanto de natural como de imprevisível. Natural porque (na juventude) comecei por escrever textos de ficção como primeiros exercícios de carácter literário, tendo depois iniciado uma carreira como jornalista, que se prolongou por mais de 20 anos, e preservando sempre o gosto pela escrita. Acabei por me especializar em temas políticos e a imprevisibilidade resulta dessas circunstâncias: o facto de ter feito uma reportagem sobre uma tomada de poder num partido acabou por se transformar numa investigação historiográfica para um livro, aliás, na sequência de um desafio do historiador recentemente falecido José Freire Antunes. É assim que publico o meu primeiro livro: o gosto pela escrita e o estímulo pela investigação.
(ARCHIVOZ) Considerando que em Portugal, tal como normalmente se verifica em termos internacionais, os partidos políticos são, por natureza, organizações fechadas sobre si mesmas, pouco abertos à mudança, não divulgando a documentação constantes dos seus arquivos, como é que tem sido efetuar investigação, nomeadamente no que respeita às fontes documentais destes partidos, existentes nos respetivos arquivos? Pode falar-nos desta questão, crucial, do acesso às fontes, na eventual escassez, perda e dispersão das mesmas?
(AC) É uma questão que terá de ser superada com celeridade, na medida em que se trata manifestamente de um obstáculo à investigação profissional. Por um lado, os partidos políticos tratam muito mal as suas memórias coletivas, desde documentos dispersos (perdidos!) pelas estruturas locais e regionais, até material de outro tipo (iconográfico, por exemplo) que fica para trás na voragem dos ciclos políticos. Por outro lado, o acesso aos arquivos (os poucos que existem ainda têm deficiências organizativas resultantes do não envolvimento de profissionais arquivistas) depende da boa vontade dos titulares provisórios dos cargos partidários. Não existe uma política previsível de acesso às fontes porque não existem sensibilidade para esta dimensão da vida pública dos partidos, sendo que se trata de acesso ao conhecimento que viabiliza partes importantes da construção da memória coletiva das sociedades.
(ARCHIVOZ) Tendo em conta as dificuldades que referiu, no que respeita ao acesso às fontes primárias dos partidos políticos, quem quiser fazer investigação sobre a história, a ação de um partido político, ou, por exemplo, relativa a determinada personalidade política, tal como se tem sido o seu caso, onde é que deve dirigir-se, ou seja, para além dos arquivos na posse desses partidos políticos? Que arquivos, bibliotecas, públicos e privados, é que deve considerar nesse sentido? Existe esta tradição, entre os políticos portugueses, em vida ou no final desta, de legarem os seus arquivos aos respetivos partidos?
(AC) Diria que o processo de investigação deve começar pelos arquivos nacionais, tendo por base um roteiro de pesquisa que envolva depois os arquivos regionais/distritais e os arquivos públicos de vocação temática (recortes cronológicos concretos, temas especializados, etc.), por exemplo. Esse quadro-geral permite ao investigador avaliar as fontes que existem e as lacunas que necessita de preencher. É aqui que entram tanto os arquivos dos partidos como os arquivos de organizações de carácter privado e, creio que esta questão merece ser olha com crescente atenção, os arquivos privados (sejam de carácter público ou restrito). Não é fácil preparar um plano de investigação que identifique previamente todas as fontes suscetíveis de serem mobilizadas devido a esta dispersão. O que decorre da ausência de uma política pública integrada para todo os arquivos e pelo envolvimento fundamental de profissionais arquivistas no tratamento e organização da informação (mesmo em arquivos privados).
(ARCHIVOZ) Na introdução da sua obra Álvaro Cunhal: Retrato Pessoal e Íntimo, publicada, pela primeira vez, em 2010, e reeditada em 2020, pela Editora Desassossego, refere na Introdução as dificuldades que sentiu em chegar, vou citá-lo, ao “homem por trás do mito?”. Sabendo que as fontes nem sempre são neutras e que, intencionalmente, nos podem induzir em erro, por via dos seus objetivos apologéticos e laudatórios, de criar uma determinada narrativa, como é que conseguiu fazê-lo?
(AC) Não estou seguro de que tenha conseguido fazê-lo porque o historiador será sempre parte ativa no processo da construção do conhecimento (o que resulta na inevitável subjetividade do seu trabalho), mas estou seguro de que se trata de um trabalho transparente e honesto. Todas as fontes estão devidamente identificadas e algumas delas, principalmente as fontes orais, foram disponibilizadas ao público. É uma biografia que se encontra no Plano Nacional de Leitura e essa valorização corresponde também à responsabilidade do investigador tanto pelo rigor dos factos como da narratibilidade, na medida em que se mobilizam testemunhos únicos e originais dos familiares mais próximos de Álvaro Cunhal e alguns dos companheiros do seu núcleo restrito, que o acompanharam em momentos fundamentais da história do PCP e do combate do Estado Novo em Portugal.
(ARCHIVOZ) Mencionou a importância das fontes orais. É fácil chegar a estas pessoas e recolher o seu testemunho? Como é que estas reagem, particularmente as pessoas mais próximas, desde logo os familiares?
(AC) Elaborar uma biografia exige desconstruir políticas inexplícitas de esquecimento, mas também superar os obstáculos que resultam da própria reconstrução do biografado enquanto sujeito histórico complexo, da mobilização de fontes escassas e dispersas, e ainda da domesticação dos recortes cronológicos. Não existem linhas temporais metrificadas e totalizantes, isto é, mundos harmoniosos onde as peças se encaixam numa matriz narrativa que fornece todas as explicações. Aliás, como se pode medir o tempo na biografia se o ritmo dos acontecimentos passados em nada se compara com o fluir do tempo na contemporaneidade? Se esses ciclos naturais do tempo não existem, qualquer exercício biográfico enquanto caminho de vida, isto é, um conjunto de factos orientados que constituem um todo, fracassará invariavelmente. A biografia não é uma história de vida, nem um caminho linear que se volta a percorrer de forma coerente e orientada. Não é uma demonstração geométrica de um saber revelado. Esta armadilha do tempo transitório tem estimulado a imaginação alguns autores e levá-los a aventurarem-se pelas «projeções presentistas» da história narrativa do pós-modernismo, ou seja, a assumirem uma espécie de ficção de autor sem quaisquer fronteiras. São narrativas que escapam aos critérios da História. Importam mais pela «compreensão» da sua força dinâmica do que pela verificação da veracidade dos factos. Por tudo isto, as fontes orais também um valor imenso. O valor final da investigação decorre da consistência e da boa vigilância da metodologia, baseada em processos rigorosos de ativação de fontes e citações e referências bibliográficas. É nesse escrutínio das fontes que se atesta a qualidade da investigação e a capacidade do investigador.
(ARCHIVOZ) No seu livro, com o título, António Guterres: Os Segredos do Poder, publicado em 2013, pela Alêtheia Editores, para além, naturalmente, de constituir uma investigação baseada em documentos e fontes orais, destaco o facto de António Guterres ter participado como fonte, caso único nas biografias que publicou. Com base na sua experiência, as figuras políticas, e mesmo os partidos políticos, estão recetivos a ser estudado, com vista a um melhor conhecimento da sua vida e obra?
(AC) Está na natureza humana uma certa apropriação da interpretação individual dos factos e dos acontecimentos de conhecimento direto. Nestas circunstâncias, existem, parece-me, duas alternativas: o biografado (o sujeito histórico) escreve a sua autobiografia e assume a interpretação monopolista; ou o biografado assume-se como fonte da sua própria biografia sujeitando-se evidentemente à interpretação do historiador, que mobiliza um vasto conjunto de outras fontes. No caso concreto de António Guterres, a sua mobilização como fonte revelou-se fundamental nos aspetos da sua vida privada, na medida em que, havendo ligação com a sua dimensão pública e política, existia também um limite ético autoimposto pelo investigador. Neste caso, a colaboração revelou-se muito importante pelo rigor na narrativização dos acontecimentos, mas também pela dimensão emocional em causa.
(ARCHIVOZ) Por sua vez, na obra A Ascensão ao Poder de Cavaco Silva / 1979-1985, publicado em 2005, pela Edeline, teve acesso às fontes do respetivo partido do político do biografado, apresentando-nos uma imagem deste muito diferente da que se encontra na autobiografia publicada pelo mesmo, ou seja, da versão “oficial”…
(AC) Trata-se do livro que citei no início desta conversa. Em primeiro lugar, existia a circunstância do biografado ter escrito a sua versão dos acontecimentos e de se encontrar em atividade política ativa, o que se traduziu numa natural relutância em colaborar com perspetivas diferentes da sua versão. O que aconteceu. O livro assume um recorte cronológico muito concreto e utiliza dois tipos de fontes fundamentais: as fontes orais, ou seja, os protagonistas dos próprios acontecimentos; e as gravações das reuniões partidárias, tornadas públicas pela primeira vez. Mesmo havendo interpretações divergentes entre os livros, não significa que a autobiografia tenha erros ou inverdades, o que existe, evidentemente, são interpretações diferentes que resultam da mobilização de fontes diferentes. Dir-se-á que em situações concretas essas interpretações excluem-se mutuamente, nesse caso, caberá aos leitores verificarem as fontes que sustentam as diferentes perspetivas, e terem conta as motivações dos autores, isto é, o político e o historiador.
(ARCHIVOZ) Já no seu livro, intitulado Júlio de Melo Fogaça, publicado em 2018, pela Editora Desassossego, menciona na Introdução as dificuldades que sentiu ao escrever esta biografia, o que lhe exigiu, passo a citá-lo, “desconstruir políticas inexplícitas de esquecimentos, mas também superar os obstáculos que resultam da própria reconstrução de Júlio Fogaça enquanto sujeito histórico complexo, da mobilização de fontes escassas e dispersas, e ainda da domesticação dos recortes cronológicos”, fim de citação. Considerando as suas palavras, no que respeita e este contexto particularmente adverso para escrever a biografia desta personalidade, a que fontes recorreu para investigar e escrever a mesma?
(AC) Este livro tem sobre si (também) a responsabilidade de estar incluir no Plano Nacional de Leitura. Num certo sentido, penso (por isso) que se trata do reconhecimento de um dos mais importantes dirigentes comunistas do século XX, um rival de Álvaro Cunhal, que acabou por ser apagado tanto da História do PCP como do movimento comunista internacional. O que resultou desde logo numa acentuada limitação de fontes. Existiam (e existem, claro) fontes importantíssimas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e o espólio pessoal de Júlio de Melo Fogaça depositado na Academia de Ciências de Lisboa, mas, uma vez mais, as fontes orais foram de enorme importância e, acima de tudo, um arquivo pessoal que permitiu dar uma ampla dimensão à biografia, por exemplo, cartas pessoais, fotografias, documento familiares, etc. Sem todas estas múltiplas fontes teria sido impossível biografar Júlio de Melo Fogaça.
(ARCHIVOZ) Para terminar, como é que imagina que no futuro será o acesso à documentação dos arquivos políticos portugueses? Acredita que será possível um acesso muito mais alargado, por parte do público em geral, do que agora se verifica? Pensa que será possível uma aposta, por parte dos partidos políticos, na implementação e desenvolvimento de um serviço de arquivo, que aposte na digitalização e disponibilização sistemática de conteúdos, em livre acesso?
(AC) Há uma questão que me parece central: a urgência do envolvimento dos arquivistas profissionais na organização das fontes. Mesmo que casos em que os voluntários e os entusiastas organizam aquilo que consideram arquivos, é fundamental garantir a profissionalização no tratamento das fontes. O facto de a democracia portuguesa ser recente deve também ser considerada nestas circunstâncias, mas o caminho terá de ser feito com profissionais.
Imagem cedida pelo entrevistado.
Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista