Entrevistamos Ana Canas, Diretora do Arquivo Histórico Ultramarino e investigadora integrada do Centro de História da Universidade de Lisboa (CH – ULisboa)

(ARCHIVOZ) O seu CV é notável e bastante diversificado, desde o ponto de vista académico, que culminou no doutoramento em Biblioteca e Estudos da Informação, na School of Library, Archive and Information Studies, da University College London, no Reino Unido, à sua experiência docente no Ensino Superior, passando pelo trabalho que desenvolveu como investigadora, em que coordenou diversos projetos de investigação, obra que tem publicada. Fale-nos um pouco do seu percurso até chegar a Diretora do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em 2005.

(Ana Canas) Os arquivos surgiram na minha vida ainda como estudante universitária de História e enquanto recurso informativo, sobretudo no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, associados a outros recursos disponíveis nomeadamente na Biblioteca Nacional. Entre a década de 80 e 2005, passei de investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência e docente de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, atenta à forma como a documentação era produzida e chegava até nós, a arquivista na Torre do Tombo (em renovação coincidente com a transferência para o atual edifício, construído de raiz). O sentido essencial passava a ser o de preservar, tratar e difundir a documentação para a comunicar aos outros. A especialização em Ciências Documentais – Opção Arquivo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e estágios posteriores nos arquivos nacionais de França e do Reino Unido, além do doutoramento que refere, proporcionaram-me conhecimentos técnicos específicos e instrumentos de observação, análise e reflexão úteis para uma visão ampla dos arquivos e da arquivística. A experiência de pesquisadora, docente e arquivista e moldou a vontade de contribuir para uma maior abertura e visibilidade do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino e da própria instituição, a partir de meados de 2005.

(ARCHIVOZ) Gostaria que nos apresentasse o AHU, desde o seu enquadramento orgânico, localização e contexto que levou à sua constituição, aos serviços que o compõem, para além de qualquer outra informação que considere indispensável para o seu conhecimento.

(AC) O Arquivo Histórico Ultramarino, sediado em Lisboa, no Palácio da Ega, depende da Direção Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas, no âmbito do Ministério da Cultura, desde agosto de 2015, na sequência da extinção, por fusão, do Instituto de Investigação Científica Tropical. Foi criado em 1931, na dependência do Ministério das Colónias, correspondendo à urgente salvaguarda de arquivos da administração colonial portuguesa, sobretudo a central, dispersa e em risco, e à que viesse a ser produzida por aquele ministério.  Atualmente, as atividades do AHU centram-se no tratamento arquivístico do acervo, na sua comunicação e divulgação e na digitalização de documentos a pedido do utilizador. A conservação e o restauro no AHU, cujo laboratório de documentos gráficos foi o primeiro em Portugal, tem estado a ser assegurada pontualmente (caso de empréstimos de documentos para exposições) pelos serviços do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

(ARCHIVOZ) O AHU tem à sua responsabilidade documentação fundamental para o estudo e conhecimento da história colonial portuguesa e da sua administração ultramarina. Que fundos e coleções integram este arquivo?

(AC) O essencial dos cerca de 16 km documentação do AHU é resultante da atividade de organismos da administração colonial portuguesa central, datada entre o final do séc. XVI e 1974-1975. Destacam-se, entre outros, os seguintes fundos: Conselho Ultramarino, Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar e Ministério do Ultramar.  Associam-se-lhes, de âmbito e dimensão muito diversos, os fundos dos Governos Gerais de Angola, Guiné, Moçambique e Índia. Entre as coleções, assinalam-se: Fotografia, Cartografia Manuscrita, Cartografia Impressa, Iconografia Manuscrita, Iconografia Impressa, Instrumentos de Descrição.

(ARCHIVOZ) Um tema, cada vez mais na ordem do dia, é o da devolução do património, neste caso, documental, aos territórios que foram ocupados por potências coloniais, e que mais tarde se tornaram independentes. Tendo em conta que o AHU possui documentação com cerca de 400 anos, relativa aos territórios que estiveram sob jurisdição portuguesa ou que contactaram com Portugal, durante quase quatro séculos, o que pensa sobre este assunto?

(AC) A documentação do AHU integra elementos de prova e é fonte relevante de uma memória global relacionada nomeadamente com Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Índia, Macau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste, além de Portugal.  Mantém-se na ordem do dia a responsabilidade nacional e a do AHU em concreto de conservar e facilitar o acesso imparcial ao património arquivístico comum, respeitando diferentes pontos de vista e em cooperação com outros países e comunidades, na linha da Recomendação da UNESCO de 17 de novembro de 2017, acerca da preservação do património documental e de compromissos anteriores envolvendo Portugal.

(ARCHIVOZ) Ainda em relação à pergunta anterior, que solução é que defende para a partilha desse acervo comum a Portugal e aos diferentes países que foram dominados administrativamente por Portugal, tornando-o acessível a todos, ou seja, que apostas é que entende que devem ser feitas nesse sentido?

Tais apostas devem ser guiadas pela vontade de colaborar, pelo espírito de inclusão e pela procura de parceiros envolvendo, sempre que possível, entidades desses diferentes países. O AHU continua a persistir, já no âmbito da Direção Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas, nos contactos com instituições congéneres e outras dos mesmos países, em troca de informações, em projetos bilaterais de tratamento e digitalização de documentos ou na sequência de projetos de investigação com uma componente patrimonial, associado a universidades. Importa renovar a capacidade, interna e em parceria, de produzir instrumentos de acesso a documentação que deles ainda não dispõe, de a digitalizar em articulação com a área de conservação e de a disponibilizar online, em função de prioridades também manifestadas por outras comunidades além da portuguesa. Em 2021, conta-se que fiquem disponíveis online a descrição e as imagens da documentação dos Dembos (Angola) registada na Memória do Mundo da UNESCO por ambos os países.

(ARCHIVOZ) Outra questão que, infelizmente, continua a marcar a atualidade desde março é o novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19, que colocaram novos desafios aos arquivos, obrigando os seus responsáveis e colaboradores a adaptar-se a novas metodologias e formas de trabalhar. Como Diretora do AHU, como é que tem sido assegurar a gestão deste serviço de informação, ao nível da organização do trabalho interno, do atendimento ao público e difusão da informação, num contexto tão difícil, para mais considerando que nos encontrarmos na segunda fase desta pandemia, sem fim aparente à vista, no curto-prazo?

(AC) Durante a primeira fase da pandemia e do confinamento, o maior desafio foi selecionar, num curto espaço de tempo, atividades que pudessem ser executadas em casa e criar condições de trabalho à distância, ao nível informático, no quadro da DGLAB. Paralelamente, procurou-se manter um contacto regular entre a equipa do AHU, mesmo entre aqueles que não podiam, pelo perfil e pelas funções, desenvolver trabalho sem ser presencial. Houve também um empenhamento em disponibilizar no site do AHU mais informação sobre o acervo, respondendo sistematicamente às solicitações, que, apesar de tudo, iam surgindo, embora com limitações no que respeita à digitalização de documentos. Atualmente e desde o desconfinamento em 18 de maio de 2021, persistem as conhecidas condicionantes de prevenção da COVID-19 que se prevê poderem ser agravadas, mesmo que temporariamente. Essas condicionantes têm levado a um esforço acrescido da tendencialmente reduzida e menos rejuvenescida equipa do AHU e, apesar desse empenho, afetam os utilizadores. Implicam, em particular, a redução do número de utilizadores presenciais em simultâneo, o agendamento prévio obrigatório das consultas na Sala de Leitura o que pressupõe uma orientação de pesquisa, pelo telefone ou por e-mail, em geral mais exigente para o AHU, a continuidade de algum teletrabalho e a necessidade de reorganização de atividades por ausências temporárias.

(ARCHIVOZ) Quais os maiores desafios que tem enfrentado na direção do AHU e os principais projetos para 2021?

(AC) Um dos maiores desafios é a renovação e a qualificação dos recursos humanos, profundamente limitadas pela impossibilidade de recrutamento fora da Administração Pública, desde há anos, problema que não é exclusivo das instituições da área da Cultura, na qual o AHU se insere. Os concursos internos em andamento são positivos, mas, porventura, deverão ser reforçados posteriormente, para um aproveitamento das várias experiências profissionais, mais conseguido e virado para o futuro. Em 2021, além destas passagens de testemunho, da resiliência ainda necessária face a mudanças derivadas da pandemia e de medidas de conservação de espaços do AHU, prevê-se o início de dois projetos com impacto no acesso à documentação. Por um lado, a nova fase do projeto “Resgate do Acervo de Cabo Verde em Portugal”, relançada através do Arquivo Nacional de Cabo Verde; por outro, o projeto “ArchWar – Controle e violência através da habitação e da arquitetura, durante as guerras coloniais”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, durante o qual será tratada mais documentação relacionada com Obras Públicas em anteriores colónias portuguesas em África.


Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista

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