(Archivoz) Fale-nos um pouco do seu trajeto formativo e profissional, até chegar às funções que desempenha atualmente, como Coordenador da Videoteca de Lisboa, cargo que ocupa desde 2010.

(Fernando Carrilho) O meu trajeto posso dizer, iniciou-se aos 16 anos quando comecei a filmar com uma câmara de vídeo doméstica que a minha tia me emprestou. Fiquei fascinado pelas potencialidades daquela pequena máquina, essencialmente pela possibilidade instantânea de registar o presente e projetá-lo para o futuro, permitindo que no futuro olhássemos para o passado. Este trabalho do tempo era mágico para mim, talvez uma consequência natural da intrínseca vontade humana de “aprisionar” a vida efémera. Cedo comecei a filmar a vida familiar, mas também a realizar rábulas humorísticas, curtas-metragens de ficção, reportagens e vídeos informativos, estes últimos em contexto escolar. Mais tarde, percebi que era esta a minha paixão, abandonei a licenciatura em economia e tirei um curso de realização na ETIC – Escola Técnica de Imagem e Comunicação. Imediatamente recebi um convite para um estágio na Videoteca Municipal de Lisboa, onde ingressei em 1997, tirei a licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura com especialização em Audiovisuais e Multimédia e seguidamente um Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação. Na Videoteca Municipal de Lisboa, exerci diversas funções, operação de câmara, montagem, realização de documentários e vídeos institucionais, coordenação de formação, programação em cinema e por fim em 2010 aceitei a proposta para coordenar este equipamento da Direção Municipal de Cultura da Câmara de Lisboa.

(Archivoz) Como salientado, coordena a Videoteca de Lisboa desde 2010, que balanço faz do exercício deste cargo?

(Fernando Carrilho) Os primeiros tempos como coordenador foram extremamente exigentes, tivemos que proceder a alterações nas instalações da Videoteca, com a reformulação dos espaços de trabalho e áreas públicas, reestruturação da equipa de colaboradores e atualização de equipamentos técnicos. Contudo, rapidamente o fluxo de trabalho foi reativado em força e com entusiamo. Considero que a Videoteca de Lisboa conseguiu elevar a qualidade das suas atividades fruto de uma equipa competente de colaboradores, comprometida e apaixonada pela missão deste serviço público. É necessário referir que os últimos tempos têm sido conturbados, consequência da carência de recursos informáticos que tem colocado diversos entraves à atividade. O impacto desta limitação só não tem sido maior, graças à gestão, engenho e criatividade de todos os colaboradores.

(Archivoz) Entre os muitos, e notáveis, documentários que realizou, quais os que gostaria de destacar e as razões dessa escolha?

(Fernando Carrilho) Destaco o filme “Ophiussa – Uma cidade de Fernando Pessoa”, um ensaio cinematográfico que me possibilitou imaginar a cidade de Lisboa através das palavras do poeta, posso dizer que este “cine-poema”, esta “ficção do interlúdio”, ajudou-me a trabalhar alguns dos “sonhos do mundo que tenho em mim”. Destacaria também “Varinas – Um símbolo de Lisboa” pela oportunidade que tive de conhecer pessoalmente algumas destas notáveis mulheres que fizeram a história da cidade. Creio que este documentário foi uma homenagem merecida a estas mulheres cuja profissão marcou indelevelmente Lisboa. Ambos os documentários receberam uma crítica muito positiva do público, a minha maior satisfação é sentir que as imagens, os sons, as histórias em que trabalho, chegam às pessoas e as tocam de alguma forma.

(Archivoz) Gostaria que nos apresentasse a Videoteca de Lisboa, desde a sua localização, as razões que levaram à sua criação, missão e objetivos, à caraterização do espaço e serviços que integra, para além de qualquer outro aspeto que considere relevante para o seu melhor conhecimento.

(Fernando Carrilho) Sediada no Largo do Calvário em Alcântara desde a sua inauguração em 1992, a Videoteca de Lisboa é um equipamento cultural integrado no Arquivo Municipal de Lisboa. Tem como missão, recolher, preservar, conservar e divulgar as imagens em movimento sobre a cidade de Lisboa nos seus diversos suportes e géneros: documentários, filmes de ficção e animação, filmes amadores, curtas e longas-metragens. Para além de coligir este património audiovisual, a Videoteca produz documentários e diversos conteúdos sobre temas, personalidades e acontecimentos relacionados com a memória da Lisboa. A programação cinematográfica, a par da vertente de arquivo e da produção audiovisual, é uma atividade central na missão da Videoteca. A realização de ações de programação, muitas das quais organizadas em parceria com universidades e outras instituições, visa promover espaços de debate e reflexão, contribuindo deste modo para o estudo e a investigação científica nas áreas do cinema e do vídeo. A organização de diversas conferências, mostras, ciclos e festivais de cinema e vídeo tem permitido uma divulgação relevante da memória audiovisual da cidade e do próprio cinema português. A Videoteca possui um pequeno auditório e disponibiliza ao público três postos de visionamento individuais para pesquisa e estudo das imagens. A seção de digitalização possibilita a conversão para digital de diversos formatos amadores e profissionais de película e vídeo.

(Archivoz) A Videoteca de Lisboa tem à sua responsabilidade um notável acervo. O que nos pode dizer sobre este e os instrumentos de acesso à informação, com vista à comunicação dos mesmos?

(Fernando Carrilho) O arquivo da Videoteca Municipal é na sua essência e naturalmente um arquivo de imagens de Lisboa que engloba a própria atividade da Câmara Municipal de Lisboa. Recentemente foi iniciado um processo de digitalização e migração para uma nova base de dados, o X-Arq, que em breve possibilitará o visionamento em linha de uma parte considerável dos conteúdos audiovisuais pertencentes ao município. O acervo é constituído por coleções distintas, não obstante o seu enfoque na cidade, destacaria a título de exemplo, a coleção de filmes familiares sobre Lisboa ou feitos lisboetas, cuja estratégia de angariação permanente tem possibilitado enriquecer a Videoteca com imagens singulares. O arquivo possui igualmente imagens de Lisboa de diversas proveniências desde os finais da década de 1920 até à atualidade e uma significativa coleção de cinema e vídeo português. A existência de um núcleo de produção audiovisual em atividade desde a sua fundação possibilitou alimentar de forma profícua o arquivo, o núcleo tem filmado a cidade através de várias perspetivas, registando em amiúde o seu património histórico e cultural. O visionamento das imagens é feito presencialmente, contudo alguns dos conteúdos podem já ser visionados em linha na base de dados que está acessível no sítio do AML – Arquivo Municipal de Lisboa e que conta já com aproximadamente 15 000 títulos descritos. Paralelamente à disponibilização da base de dados a divulgação do seu acervo é potenciada pela partilha de alguns conteúdos e informação nas plataformas e redes sociais do AML, com especial ênfase no canal de Youtube do Arquivo Municipal de Lisboa – Videoteca. Como é do senso comum, na atualidade a participação das instituições nas plataformas e redes socias é vital na divulgação e promoção das suas atividades.

(Archivoz) E no que respeita à abertura da Videoteca de Lisboa à comunidade, quais as atividades desenvolvidas de forma a alcançar esse objetivo, sabendo que esta acolhe os mais variados eventos na área do cinema e do vídeo?

(Fernando Carrilho) Os últimos dez anos foram marcados por um aumento significativo do número de consultas ao arquivo. O acervo da Videoteca tem despertado um interesse crescente entre realizadores, investigadores e alunos de cinema e audiovisuais. As imagens à guarda da Videoteca têm integrado diversos filmes e documentários de produção nacional e internacional e têm sido alvo de diversos estudos por parte da comunidade académica. Esta realidade deve-se essencialmente à organização de ciclos, mostras e festivais de cinema e vídeo que têm vindo a proporcionar uma enorme visibilidade do arquivo. Ou seja, a atividade de programação está intimamente ligada ao arquivo, que faz dele ponto de partida e de chegada. O ciclo Topografias Imaginárias iniciado em 2015 explora a relação do cinema com a cidade sob várias perspetivas, resgatando do arquivo filmes que exploraram nas suas narrativas a cidade de Lisboa. Em cada edição são convidados realizadores, produtores e investigadores que contribuem de forma enriquecedora para esta reflexão. O Natura – Festival Ecovídeo de Lisboa, por outro lado, estimula a criação de vídeos sobre a natureza e a ecologia em Lisboa, o enfoque na temática ambiental teve como finalidade a constituição e disponibilização em linha de um arquivo ecovideográfico sobre a cidade. A Traça – Mostra de Filmes de Arquivos Familiares é porventura, o evento com maior proximidade com a comunidade, na medida em que fomenta o contacto com as populações dos diferentes territórios de Lisboa, coligindo filmes e vídeos de produção amadora e devolvendo-os ao mesmo tempo aos depositantes de forma criativa. O festival organiza projeções nos próprios lugares onde foram recolhidos envolvendo as pessoas e convocando artistas de diferentes formações a trabalharem as imagens, um encontro que promove uma participação ativa de todos, programadores, artistas e moradores. Outro projeto de forte contacto com a comunidade, inserido no programa Memórias de Lisboa, organizado pela Direção Municipal de Cultura é o Histórias e Memórias de Alcântara, projeto que visa recolher através de diversos depoimentos as memórias e as vivências da freguesia onde está instalada a própria Videoteca, território com uma marcante herança industrial.

(Archivoz) Um tema incontornável, desde meados de março de 2019, e que, infelizmente, ainda continua na ordem do dia, é o novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19. Como Coordenador da Videoteca de Lisboa, quais foram os grandes desafios que enfrentou, ao nível da organização do trabalho interno, do atendimento ao público e da difusão da informação? Que estratégias foram desenvolvidas para mitigar o impacto desta conjuntura tão adversa?

(Fernando Carrilho) Todo o sector cultural foi violentamente afetado como é do conhecimento geral. No caso da Videoteca significou a interrupção de vários projetos, a produção de documentários e a programação sofreram fortes reveses. No que concerne à programação, e na impossibilidade de promover a concentração de pessoas, a alternativa foi organizar em 2020 a Traça – Mostra de Filmes Familiares constituindo um sítio-mapa. Os filmes foram disponibilizados em linha associados a um mapa que convidada as pessoas a percorrerem individualmente o território de Marvila e Alvalade e a relacionarem nos lugares os diversos conteúdos do sítio sobre estas freguesias. O Natura – Festival Ecovídeo de Lisboa foi em boa hora organizado presencialmente, em setembro do mesmo ano num momento de ligeira trégua da pandemia. As projeções em local aberto e com as devidas medidas prevenção foram recebidas com enorme satisfação por um público saturado de eventos em linha e ansioso de sair do confinamento. Embora a produção de documentários tivesse que ser interrompida, na medida em que envolvia o registo de entrevistas que implicava um certo grau de proximidade, o núcleo de produção audiovisual teve um acréscimo de trabalho com o registo e transmissão de debates, comunicações e conferências para as plataformas e redes sociais, assim como a edição e disponibilização de diversos conteúdos em vídeo. Perante a adversidade julgo que a resposta foi extremamente positiva num período muito difícil que ninguém quer voltar a viver.

(Archivoz) Tendo em conta a notável dinâmica que carateriza a Videoteca de Lisboa, quais os principais projetos e atividades que se encontram em curso, para mais considerando que no presente ano se celebram os 30 anos da sua abertura ao público, e os que estão planeados para 2023?

(Fernando Carrilho) Até ao dia 2 de junho de 2023 estará patente ao público na Videoteca uma exposição que assinala os seus 30 anos de existência. Evocando a efeméride foi também editado um pequeno livro sobre a história deste equipamento municipal. Estamos neste momento trabalhar em três produções audiovisuais que têm data de estreia para o próximo ano, um documentário biográfico sobre o arquiteto Keil do Amaral, um documentário sobre as políticas de habitação em Lisboa na sequência da exposição homónima que terá lugar no Museu de Lisboa e um documentário sobre a arte de encadernação na cidade, no âmbito de uma parceria entre o Arquivo Municipal de Lisboa e o IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da FCSH – Universidade Nova de Lisboa. Na programação, está previsto a 8ª edição das Topografias Imaginárias e a 4ª mostra da Traça.

(Archivoz) Para terminar, quais é que pensa que são os grandes desafios que as videotecas portuguesas, e os respetivos profissionais, têm de enfrentar, ao nível da organização, preservação e divulgação das respetivas coleções e acervos?

(Fernando Carrilho) Já passaram algumas décadas desde o anúncio da epopeia da digitalização dos arquivos, mas no que concerne à imagem em movimento ela ainda está infelizmente no prólogo. A digitalização de suportes fílmicos e videográficos em fita magnética implica um certo grau de complexidade tecnológica. A obsolescência dos equipamentos de leitura, a fragilidade dos suportes e as consideráveis exigências de armazenamento de informação necessitam de investimento e recursos financeiros que nem sempre estão disponíveis. Estes obstáculos resultam num incipiente processo de digitalização que se quer muito mais célere e dinâmico. Diria, portanto, que o primeiro desafio dos arquivos que lidam com a imagem em movimento é incrementar de forma musculada e eficiente a digitalização. Paralelamente, saber classificar e gerir essa informação, através de bases de dados versáteis e motores de busca simples e eficazes, ou seja, potenciar a acessibilidade à informação. A divulgação dos acervos e a disseminação da informação é inseparável de uma aposta inteligente no desenvolvimento de redes e plataformas em linha. No entanto, no decorrer deste processo é fundamental proteger e assegurar os direitos de autor e os direitos conexos das obras e conteúdos que como sabemos sofrem todo o género de ameaças assim que são convertidos em ficheiros digitais. Para finalizar considero que os arquivos devem manter um foco objetivo e consistente na coleção dos seus acervos, evitarem a dispersão e tornarem-se especializados em determinadas temáticas. O ato de arquivar não pode ser passivo, quero dizer com isto, que as instituições não podem simplesmente aguardar que lhes batam à porta para depositarem documentos, devem estar atentas ao meio e empreender ativamente uma procura seletiva do que é absolutamente vital de ser coligido e preservado. Por último, uma contínua e estreita ligação à comunidade académica deve ser fomentada, promovendo a investigação e a valorização dos arquivos. Julgo que estas preocupações, desejos e ambições são comuns na maioria dos profissionais desta área, estou convicto que é neste sentido que devemos caminhar.

Imagem cedida pelo entrevistado: Arquivo da Videoteca

Entrevistado:

Fernando Carrilho

Fernando Carrilho

Coordenador do Arquivo Municipal de Lisboa | Videoteca

Fernando Carrilho é mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa com a tese intitulada: Estruturas de Produção do Documentário Português, licenciado em Ciências da Comunicação e da Cultura, com especialização em audiovisuais e multimédia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e tirou o curso de realização em vídeo e televisão pela ETIC – Escola Técnica de Imagem e Comunicação. Foi membro da direção da Apordoc – Associação pelo Documentário entre 2009 e 2014, é desde 2010 coordenador do Arquivo Municipal de Lisboa | Videoteca, realizou vários documentários e curtas- metragens de ficção, onde se destacam: Linha 8 (2002), Abalar (2004), Ophiussa – Uma cidade de Fernando Pessoa (2012), A Paisagem de Artur Pastor (2014), Varinas – Um Símbolo de Lisboa (2015) e Ventura Terra – Projectar a Modernidade (2017). Participou com diversas obras em festivais nacionais e internacionais de cinema e vídeo, obtendo vários prémios e distinções.

Entrevistador:

Paulo Batista

Paulo Batista

Editor de contenidos en Portugues

Doutor em Documentación (Universidad de Alcalá de Henares – UAH), Mestre em Ciências da Informação e da Documentação (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa – FSCH-UNL), Máster em Documentación (UAH) e Diploma de Estudios Avanzados de Doctorado em Bibliografia y Documentación Retrospectiva en Humanidades (UAH), Pós-graduado em Direito da Sociedade da Informação (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e em Ciências da Informação e da Documentação – Biblioteconomia e Arquivística (FCSH-UNL), Especialização em Boas Práticas em Gestão Patrimonial e em Ciências da Informação e da Documentação – Arquivística (FCSH-UNL), Licenciado em História (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).

Atualmente desempenha funções de Técnico Superior no Arquivo Municipal de Lisboa, de Professor Convidado no Mestrado Arquitetura e Cultura Visual em Lisboa (Unidades Curriculares “Arquivos de Arquitetura: do documento à difusão” e “Fontes de arquitetura e produção de conhecimento”), do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, de Professor Convidado no Curso de Pós-Graduação de Museologia (Unidade Curricular “Arquivos e Museologia”), da Universidade Autónoma de Lisboa, e de Investigador Integrado do CIDEHUS.UÉ – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, para além de formador na BAD – Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação, em Arquivos de Arquitetura, e da Câmara Municipal de Lisboa, em Introdução às Técnicas Documentais. É Secretário da Comissão Executiva da Secção de Arquivos de Arquitetura do Conselho Internacional de Arquivos.

Foi docente no Mestrado de Ciências da Informação e da Documentação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, técnico superior no Instituto Português do Património Cultural, no Instituto Português do Património Arquitetónico/Palácio Nacional de Queluz e no Instituto de Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, e investigador no Instituto de Investigação Científica tropical – Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga.

É autor de diversos livros e publicações em revistas da especialidade portuguesas e estrangeiras, em livros de coordenação diversa e artigos científicos apresentados em congressos nacionais e internacionais.

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