Hoje entrevistamos Guilherme Gouveia:
(Archivoz) No seu estágio de Mestrado em História e Património, no ramo de especialização de Arquivos Históricos, escolheu um arquivo religioso: Descrição e Organização do Fundo do Convento de São Francisco do Porto: valorização de um património arquivístico conventual. Porquê um arquivo religioso?
(José Guilherme Gouveia) A escolha de um arquivo religioso para objeto de trabalho, no âmbito do meu estágio de mestrado, adveio de um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, baseou-se na minha área de formação e na minha experiência de vida em contexto religioso. Estive ligado vários anos à Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) e fiz o curso de Licenciatura em Teologia. Esta dimensão era um potencial a aproveitar.
Depois na procura de uma herança patrimonial de destaque no Porto, afigurou-se de imediato, para mim, o Convento de S. Francisco do Porto, cuja igreja – única estrutura física sobrevivente do convento – é a representante maior da arquitetura religiosa gótica e barroca na baixa histórica da cidade do Porto. O Convento de S. Francisco acompanhou e marcou de modo significativo a vida da cidade, ao longo dos tempos. Os conventos eram importantes centros da vida urbana, não apenas a nível religioso, mas também social e económico e os seus fundos documentais permanecem como testemunho desses contextos históricos. Apesar do valor dos arquivos religiosos conventuais ou monásticos, como fontes de informação histórica, ainda muitos deles permaneciam “esquecidos” – na altura do curso e ainda hoje – sem um tratamento arquivístico aprofundado e adequado que possibilitasse uma boa recuperação da sua informação e, nalguns casos, até a sua correta preservação física e informacional. Na altura, pareceu-me assim oportuno que o meu estágio pudesse contribuir para que o Convento de São Francisco do Porto pudesse ser mais conhecido pelos investigadores e por todos, através do acesso ao conteúdo do seu acervo documental.
Finalmente, a dimensão e a tipologia deste fundo, existente no Arquivo Distrital do Porto, eram adequadas para uma descrição no seu todo ao nível do catálogo, possibilitando ao mesmo tempo concretizar conhecimentos adquiridos no curso, quer ao nível de paleografia, quer de contextualização histórica, quer de descrição arquivística em consonância com as normas internacionais (ISAD-G) e nacionais (ODA).
(Archivoz) Considera que os Arquivos Religiosos devem ter uma atenção especial, em relação aos outros ou não?
(José Guilherme Gouveia) Qualquer arquivo histórico é em si mesmo digno de uma atenção especial. Eles constituem a principal fonte para a investigação histórica. Os arquivos religiosos merecem a atenção especial que é devida a qualquer arquivo histórico. Penso, por isso, que os arquivos religiosos merecem sim uma maior atenção, em relação àquela que lhes costuma ser atribuída. O facto do seu contexto produtivo ser religioso pode induzir no erro de considerar que essa é a única temática informacional que neles pode ser encontrada ou que é de carácter secundário.
Continua-se a pensar um arquivo como sustentáculo de uma temática apenas! Contudo, um arquivo é o resultado de vários contextos, de necessidades das entidades que o produzem, de variadas estratégias… Nos arquivos religiosos – cujo contexto produtivo pode ter sido paroquial, diocesano, monástico, conventual, associativo ou pessoal – podem ser encontradas séries documentais – tais como emprazamentos, instituições de legados e de capelas, inventários (de bens ou de pessoas), registos com dados pessoais (róis de confessados, registos de batismo ou registos de matrimónio, por exemplo), ou testamentos, só para citar algumas – que apresentam dados muito relevantes, fundamentais e, por vezes únicos, sobre propriedades, localidades, genealogia familiar, atividades profissionais, contextos institucionais e sociais.
O seu conteúdo informacional é por isso transversal e pode ser de grande auxílio em estudos de caráter sociológico ou económico, administrativo ou político, entre outros, para além dos de história religiosa.
Os arquivos religiosos mais antigos estão, regra geral, sob alçada de entidades públicas, nomeadamente da Torre do Tombo e dos arquivos distritais, em resultado sobretudo das duas grandes campanhas de nacionalização de arquivos religiosos, que foram a nacionalização dos arquivos monásticos e conventuais pelo decreto da extinção das ordens religiosas por D. Pedro IV, a 30 de maio de 1834, e a nacionalização de arquivos paroquiais e diocesanos pelo novo governo republicano após 1910. Julgo que a nível público, nomeadamente distrital e municipal, tem crescido uma sensibilidade e atenção particular dada aos seus próprios arquivos de carácter religioso, que se tem expressado não apenas por uma preocupação na sua proteção e conservação física, mas também na procura da preservação e divulgação do seu conteúdo informacional, através da disponibilização de registos e de objetos digitais em plataformas informáticas de arquivo. Refiro, a título de exemplo, as digitalizações de registos paroquiais, cada vez mais disponíveis online para consulta nas plataformas informáticas de vários arquivos distritais. Julgo que um recente aumento do interesse das pesquisas genealógicas tem contribuído para essa atenção especial.
Contudo, existe um grande número de arquivos religiosos institucionais ou pessoais que são pertença ou tutelados por entidades privadas: dioceses e instituições diocesanas, paróquias, santuários, ordens terceiras, congregações religiosas, ou outras associações religiosas ou laicais. Aqui a atenção ao seu tratamento arquivístico, preservação e disponibilização à investigação, tem ainda bastante caminho a percorrer. O acesso à informação nestes arquivos pode ser mais complexo.
A meu ver, há três fatores que dificultam a atenção dada ao tratamento destes arquivos. O primeiro fator é a necessidade de uma disponibilização de recursos humanos e financeiros para um tratamento adequado, por parte dessas entidades privadas, que a maior parte não possui, não tem condições para assumir ou não quer assumir. O segundo fator tem a ver com a privacidade e o sentido de propriedade. Algumas instituições detentoras de arquivos parecem recear a perda ou a demasiada exposição do conteúdo dos seus acervos ao exterior, ao abrir a possibilidade de estes serem tratados. Nota-se, como ainda pesa a tradição de considerar a informação num arquivo histórico como um bem patrimonial e até cheio de segredos. Por último, há a consideração de que os arquivos não são objeto de dedicação prioritária, porque não são fundamentais para o funcionamento corrente da instituição e não irão trazer retorno financeiro aos gastos que exigem. Para isso, contentam-se em “arrumar” esses conjuntos documentais num lugar protegido.
Felizmente, têm surgido iniciativas bastante significativas no âmbito dos arquivos religiosos tutelados por entidades privadas, das quais destaco e enalteço os portais portugueses de arquivos religiosos, o PAPIR – Plataforma de Arquivos Pessoais e de Instituições Religiosas e o RAIR – Rede de Arquivos de Instituições Religiosas, ambos promovidos pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (CEHR-UCP), bem como os seminários e conferências que se têm organizado à volta deles. Convém igualmente referir os estudos e estágios curriculares dedicados a arquivos religiosos que têm sido realizados ao longo dos últimos por alunos de cursos de licenciatura e de mestrado de algumas faculdades, nomeadamente cursos na área de História e Património e na área de Ciências da Informação, dos quais têm resultado relatórios, teses e a disponibilização da informação, metainformação e objetos digitais para acesso online a esses mesmos arquivos.
(Archivoz) Paralelamente a esta experiência tratou o arquivo de D. Domingos de Pinho Brandão, destacada figura da Igreja e da Cultura. Como caracterizaria esta experiência num arquivo religioso, mas desta vez na vertente de arquivos pessoais?
(José Guilherme Gouveia) O arquivo de D. Domingos de Pinho Brandão (1920-1988) é precisamente um exemplo de que um arquivo de carácter religioso pode conter uma riqueza documental em áreas bastante diversas. Neste caso, D. Domingos, para além de ter sido Presbítero, Reitor do Seminário Maior do Porto, Bispo auxiliar de Leiria e Bispo Auxiliar do Porto, foi também arqueólogo, professor e investigador em História, Arqueologia, Etnografia, Arte Sacra e Património, entre outras áreas.
O trabalho neste arquivo ofereceu-me novos desafios. Sendo um arquivo pessoal, a sua documentação não deixou de apresentar alguma complexidade, que era representativa da diversidade das funções que foram desempenhadas por aquele prelado nascido em Rossas, Arouca. D. Domingos foi também fundador de dois importantes museus de arte sacra, o Museu de Arte Sacra e de Arqueologia do Porto, em 1958, e o Museu Regional de Arte Sacra de Arouca, em 1977, e contribuiu fundamentalmente para a criação do Museu Diocesano de Arte Sacra de Leiria, inaugurado em 1988, ano da sua morte. Esta pluralidade de funções, produtora de uma diversidade documental quanto ao conteúdo, tipologia, ao formato ou ao suporte, exigiu uma atenção particular, constante quer nos processos de recenseamento e de descrição, quer no estudo para a sua contextualização, quer na organização intelectual, quer no acondicionamento adequado da documentação. A abordagem a este arquivo, como a outros que tenho tratado, foi a de considerar a informação como uma realidade sistémica, na qual todas as unidades documentais, independentemente da sua tipologia ou suporte, estão integradas num contexto de produção e relacionadas entre si.
Logo no início deste trabalho, deparei com uma primeira caixa que continha peças arqueológicas, fotografias e peças documentais textuais relacionadas com arqueologia. Foi uma novidade para mim, abordar um conjunto documental assim diferente, sobretudo na sua tipologia e suporte. Outro desafio – e que agora reconheço ser comum em arquivos pessoais – foi o facto de muitos documentos escritos se encontrarem soltos, misturados em maços, ou dentro de pastas, sem qualquer relação de conteúdo ou de contexto produtivo entre si, a não ser terem sido produzidos ou acumulados por D. Domingos de Pinho Brandão, no exercício das suas funções ao longo da vida. Esse facto exigiu ainda mais cuidado no estudo biográfico daquela personalidade eclesiástica, que se concretizou na investigação em bibliografia e na recolha de dados da própria documentação. Outro desafio neste arquivo pessoal religioso foi decidir por soluções de acondicionamento adequadas aos tamanhos e suportes diversos da documentação, que incluía peças escritas e gráficas de variados tamanhos, desde fichas de leitura e correspondência até desenhos e posters de tamanho superior a A3, material fotográfico diversos (positivos, negativos, slides) e peças arqueológicas de pedra e metal, só para mencionar alguns.
Considero que os arquivos pessoais que tenho tratado não representam uma maior simplicidade ou facilidade de tratamento em relação a arquivos institucionais, bem pelo contrário, costumam ser constituídos por uma maior diversidade de conteúdos, formatos e suportes dos seus documentos. A maior parte das vezes não existem biografias nem estudos sobre os seus produtores e a descrição arquivística requer estudo para aquisição de vocabulário técnico específico das áreas do seu conteúdo informacional. Pode existir uma visão redutora que identifique um arquivo pela função principal do seu produtor, esquecendo que uma pessoa é muito mais do que a sua atividade principal. Por exemplo, eu costumo referir que a Fundação Marques da Silva possui arquivos de arquitetos e não arquivos de arquitetura, porque embora muitos dos documentos de cada acervo estejam integrados em processos de obra de arquitetura ou de urbanismo, a sua documentação é muito mais vasta e reflete outras atividades dos arquitetos, seja a nível familiar, seja a nível de hobbies, entre outros.
(Archivoz) Como conciliou o seu trabalho na Fundação Marques da Silva, onde trata arquivos de arquitetos, com o trabalho efetuado no arquivo da Casa do Cabido da Sé do Porto. De que forma gere estas responsabilidades profissionais, em termos arquivísticos?
(José Guilherme Gouveia) A conciliação de trabalho em arquivos detidos por entidades diferentes foi sobretudo uma adequação de horários. O meu trabalho na Fundação Marques da Silva permitia uma flexibilidade no horário que me possibilitou dedicar uma horas extra ao Arquivo do Cabido da Sé do Porto. Quanto ao trabalho arquivístico em si, trabalhar em arquivos diferentes é uma mais-valia, porque se vai adquirindo saber e experiência, num lado que pode ser utilizado no outro. Quanto mais diversos são os arquivos que se trata, maior é a riqueza científica e cultural acumulada. De um modo geral, a abordagem arquivística aos acervos, ainda que diferentes no seu contexto de produção e conteúdo, é a mesma, com o mesmo modelo e método de trabalho, em consonância com as normas nacionais e internacionais.
Cada tipo de arquivo tem depois as suas especificidades, o que irá influenciar opções que sejam necessárias tomar, como pode ser em relação às séries documentais a dar prioridade ou ao tipo de acondicionamento adequado. Um arquivo histórico religioso, como é o caso do que se encontra na Casa do Cabido da Sé do Porto, requer, por exemplo, uma capacidade de leitura de escritas antigas – gótica, cursiva ou encadeada – e conhecimento de contextos históricos também mais antigos. O arquivo de um arquiteto ou de um atelier de arquitetura requer, por exemplo, o conhecimento das diversas etapas de um processo de obra de arquitetura ou de urbanismo ou dos processos de impressão, materiais e suportes utilizados na execução das peças desenhadas.
Entrevistado:
José Guilherme Gouveia
Técnico superior de arquivo na Fundação Marques da Silva, da Universidade do Porto
José Guilherme Gouveia nasceu no Porto e fez a sua formação nos seminários dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) em Portugal. Obteve a licenciatura em Teologia em 1999, pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, concluiu o Mestrado em História e Património, Ramo de Arquivos Históricos, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 2011.
No âmbito do Mestrado, realizou estágio no Arquivo Distrital do Porto, resultando daí o relatório: Descrição e Organização do Fundo do Convento de São Francisco do Porto: valorização de um património arquivístico conventual. Desde 2017 tem participado em projetos de tratamento arquivístico, com destaque para a descrição, organização, acondicionamento do Arquivo de D. Domingos de Pinho Brandão, Bispo Auxiliar do Porto, tutelado pelo Seminário Maior do Porto, para o recenseamento e avaliação documental dos arquivos administrativos de faculdades da Universidade do Porto – Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP) e Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS-UP), dentro do projeto “Arquivos – Preservar a Memória e Potenciar o Uso da Informação na Gestão”, tutelado pela Reitoria da Universidade do Porto, e para a descrição e organização do Arquivo da Casa do Cabido da Sé do Porto.
Trabalha atualmente como técnico superior de arquivo na Fundação Marques da Silva, da Universidade do Porto, onde tem desenvolvido o tratamento arquivístico de acervos de importantes arquitetos portugueses, tais como os de Bartolomeu Costa Cabral, Carlos Carvalho Dias, Fernando Lanhas, Octávio Lixa Felgueiras, José da Cruz Lima, Manuel Marques de Aguiar e Rui Goes Ferreira, entre outros.
Entrevistador:
Alexandra María Silva Vidal
Editor de conteúdo
Chefe de serviço del Archivo de la Venerável Ordem Terceira de S. Francisco do Porto e archivera principal en el Archivo Historico de la Iglesia Lusitana (comunión anglicana de Portugal )