Entrevista a Maria Fernanda Curado Coelho, Professora, pesquisadora e consultora em gestão de acervos audiovisuais. A apresentação do relato será em duas partes.

 

 

(Archivoz) Comente a respeito da sua formação e de como tomou contato com os arquivos audiovisuais.

(Maria Fernanda Curado Coelho) Em 1979, eu ainda era estudante de Cinema, Rádio e TV, na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP) em São Paulo, e o professor de História do Cinema Brasileiro informou que a Cinemateca Brasileira (CB) precisava de pessoas para catalogar o acervo. Descobri naquele momento que existia um arquivo especializado em cinema e que isso se chamava Cinemateca. Alunos dos cursos de Cinema da FAAP e da Universidade de São Paulo (USP) se candidataram à vaga, houve um processo seletivo e foram contratados 12 estudantes – entre eles estava eu. Naquele momento em que ingressei na Cinemateca Brasileira (CB), a instituição estava inteira em um galpão no Parque do Ibirapuera, com divisórias internas em madeira, que abrigava (de maneira bem apertada) o acervo, as áreas de trabalho, incluindo um laboratório de restauração, a administração, cozinha, banheiro e o quarto do caseiro.

Uma pessoa da reduzida equipe de então (José Motta) ficou responsável por nos ensinar e orientar em relação ao manuseio correto dos filmes, a identificação dos suportes e dos problemas de conservação, e à catalogação dos conteúdos, que consistia em descrever minimamente as imagens, cartelas, intertítulos, em fichas elaboradas a partir de padrões e códigos que tinham sido sistematizados por essa equipe. Fiquei apaixonada pelo trabalho e esse foi o começo da minha trajetória profissional.

Em meados dos anos de 1980, quando trabalhava no Laboratório de Restauração da CB, o chefe do laboratório (João Sócrates) me estimulou a estudar Museologia. Dizia ele: “cinema você já sabe o que é. Agora precisa aprender sobre patrimônio cultural”. E eu fui fazer o curso de Pós-graduação Lato Sensu no Instituto de Museologia da Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo (FESPSP) – de duração de 3 anos e com caráter formativo, que infelizmente não existe mais. Esse curso era coordenado pela maior museóloga brasileira, Waldisa Rússio Guarnieri, e formou vários museólogos que se destacaram no desenvolvimento da Museologia no Brasil.

Desde o início da atuação com os arquivos audiovisuais, meu interesse se concentrou nas questões mais técnicas de conservação e restauração do acervo. Como não existia curso específico de formação na área da preservação audiovisual (e não existe até hoje), fiz uma infinidade de cursos de curta duração, participei de muitos Seminários e Congressos na área da conservação de bens culturais, de Museologia, de fotografia; enfim, de tudo que pudesse agregar e renovar as minhas informações técnicas e fundamentar o meu trabalho com o acervo audiovisual.

Trabalhei na CB por 36 anos, dediquei-me muito, aprendi muito na lida do dia a dia, e usei minha experiência como estudo de caso para fazer minha dissertação de mestrado, que defendi em 2009, na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP, já com 51 anos.  Aposentei-me da CB em 2015 e continuo trabalhando na área com muito afinco.

Imagem de tela do documentário “Vestígios do Brasil”, de 05 de maio de 2022. Disponível em: https://tv.apple.com/br/episode/fernanda-coelho/umc.cmc.7i2rrnua77491u6yp9i7tdick.

(Archivoz) Diante da sua experiência com arquivos audiovisuais, como que conjuntos de documentos audiovisuais são considerados patrimônio social?

(Fernanda Coelho) As cinematecas nasceram, em todo mundo, compreendendo que o cinema ia muito além do entretenimento, que era manifestação cultural, fonte histórica, ferramenta de educação e também veículo de difusão de ideias. Ou seja, os acervos que estão em arquivos audiovisuais no mundo inteiro (exceto, talvez, aqueles que estão nas grandes produtoras cinematográficas) são compreendidos como patrimônio cultural e social.

Diferente de muitos museus e de arquivos, nas cinematecas a maioria das obras do acervo não é de sua propriedade – são materiais depositados nessas instituições pelos detentores dos direitos legais, para que sejam preservados. Porém, as obras audiovisuais têm direitos de propriedade que não são transferidos ao Arquivo no ato do depósito. No meu entender, há uma compreensão (ainda que muitas vezes inconsciente) de que a memória audiovisual é um bem público, um patrimônio social, e que, portanto, deve ser preservada mesmo que seja uma obra com direitos privados. Ressalto que, ainda que o Estado faça investimentos altos (embora insuficientes) para preservar esta memória do audiovisual, as cinematecas públicas não podem usar seu acervo para fins comerciais. Ao contrário, podem fazer o uso para fins culturais e educativos, os quais não envolvem questões de mercado e lucro, tais como realização de mostras em salas próprias, oferecimento de acesso a pesquisadores e estudantes, empréstimos de cópias para parceiros, dentre outras atividades voltadas para pesquisa e difusão do acervo. Enfim, esta é uma realidade mundial: a maioria dos países tem suas cinematecas públicas preservando os documentos audiovisuais privados.

Mais recentemente, tem-se debatido muito as criações audiovisuais das periferias, dos povos originários e de outros grupos invisibilizados da sociedade e o desafio de preservar essas produções como parte da memória social, que é extremamente representativa dentro de uma sociedade que se comunica cada vez mais fortemente através das imagens e sons. A consciência de que isso é um patrimônio social é muito clara por parte daqueles que trabalham com acervos audiovisuais.

 

(Archivoz) Quais as políticas, se existem, de determinação de transferência de documentos para as instituições de preservação?

(Fernanda Coelho) Existe a Lei do Audiovisual nº 8.685, em seu Art. 8º, determina “Fica instituído o depósito obrigatório, na Cinemateca Brasileira, de cópia da obra audiovisual que resultar da utilização de recursos incentivados ou que merecer prêmio em dinheiro concedido pelo Governo Federal”. Essa é a única obrigatoriedade definida por lei e podemos identificar imediatamente dois problemas. Primeiro porque se restringe apenas às produções que se valeram de leis de incentivo cultural, que quase significa dizer “cinema de mercado e longa metragem”, ficando de fora a boa parte da produção de curta-metragens, de produtores independentes, programas jornalísticos, filmes domésticos, filmes de arte, etc. Segundo, porque não inclui a obrigatoriedade do depósito de materiais relacionados à obra, como roteiros, fotografias de cena, peças de divulgação, documentos de produção e escolhas tecnológicas; enfim, documentos relacionados à produção do documento audiovisual e que são fundamentais para uma compreensão mais profunda da obra.

Normalmente, a maior parte das obras audiovisuais chegam aos arquivos por iniciativa dos próprios realizadores e/ou produtores. Porém, é comum isso acontecer um pouco tarde, quando os materiais já apresentam algum processo de deterioração instalado ou no caso do digital, matrizes de baixa qualidade e com problemas técnicos que os realizadores nem sempre têm condições de identificar, dada à acelerada mudança tecnológica e a consequente obsolescência de formatos e sistemas.

 

(Archivoz) Quais eram os desafios de preservação de tais documentos antes da era digital, incluindo a transferência para as instituições de preservação e sua conservação?

(Fernanda Coelho) Antes de tudo, quero deixar claro o que chamamos de documentos audiovisuais.

Ray Edmondson vem fazendo um excelente trabalho de refletir sobre o tema, de definir conceitos e termos, que estão sendo adotados internacionalmente. Para quem tem interesse no assunto, recomendo muito que leiam seu livro “Arquivística audiovisual: filosofia e princípios”, publicado pela Unesco. Por definição, “Documentos audiovisuais são obras que contêm imagens e/ou sons reprodutíveis reunidos em um suporte e que: 1.) em geral, exigem um dispositivo tecnológico para serem registrados, transmitidos, percebidos e compreendidos; 2.)  o conteúdo visual e/ou sonoro tem duração linear; e 3.) o objetivo é a comunicação desse conteúdo e não a utilização da tecnologia para outros fins.” Isso inclui filmes, fotografias, fitas de vídeo, discos de leitura óptica como CD, DVD e todos os suportes para arquivos digitais, como HDD, cartões de memórias, etc.

Com isso, quero apenas realçar que existe uma grande variedade de suportes materiais e tecnologias que implicam em dois fatores determinantes para a preservação de longo prazo desse tipo de documento: a fragilidade físico-química dos suportes e a permanente obsolescência tecnológica.

Praticamente todos os suportes do audiovisual são híbridos na sua estrutura físico-química, onde é reunido, no mesmo objeto, materiais de naturezas diferentes, orgânicos e inorgânicos. Uma fotografia, para dar um exemplo, pode ter uma base de papel (celulose/vegetal), com um aglutinante de gelatina animal e com elemento formador de imagem em prata (metal/mineral). Cada um desses elementos reagirá ao mundo externo de uma maneira diferente e facilmente deflagrará processos degenerativos. São suportes que precisam obrigatoriamente de sistemas de conservação preventiva, para, por exemplo, criar condições climáticas estáveis e retardar os processos de deterioração. Se as medidas de conservação preventiva não forem tomadas, em menos de uma década uma película cinematográfica pode deteriorar a ponto de ser impossível sua restauração. Portanto, é um desafio desenvolver as condições de sobrevivência para longo prazo de suportes tão frágeis.

As mudanças tecnológicas acontecem na história do audiovisual desde que foi inventado, a história do cinema (fotografia e televisão) se confunde com a história das tecnologias de captação, edição e transmissão de imagens em movimento. A dependência tecnológica é total, como a própria definição de documento audiovisual indica: “(…) em geral, exigem um dispositivo tecnológico para serem registrados, transmitidos, percebidos e compreendidos”. Isso significa que as cinematecas precisam preservar, além das obras audiovisuais, também os equipamentos das tecnologias então obsoletas para que se possa ter acesso às imagens e sons dos modos de fazer mais antigos. No mundo analógico isso já era um problema, mas no mundo digital é ainda mais problemático.

Em termo de transferência para as instituições, creio que já respondi boa parte na outra questão. Acrescentaria apenas que, normalmente, os depositantes só encaminham para as cinematecas as obras audiovisuais, sem que os equipamentos acompanhem o depósito. Então, cabe ao arquivo buscar, adquirir e conservar esses equipamentos para que as obras possam ser visualizadas, catalogadas, duplicadas e acessadas pela sociedade.

Referências:

Imagem principal de Dmitry Demidov. Disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/envelhecido-curtido-maturado-antiguidade-2893694/

EDMONDSON, Ray. Arquivística audiovisual: filosofia e princípios. Unesco. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000259258.

Lei nº 8.685, de 20 de julho de 1993. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1993/lei-8685-20-julho-1993-349838-publicacaooriginal-1-pl.html

 

>> A segunda parte será publicada em 18 de dezembro

Entrevistado

Maria Fernanda Curado Coelho

Maria Fernanda Curado Coelho

Professora da Pós Graduação Gestão Arquivística da Informação e Dados da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo; professora e consultora autônoma em gestão de acervos audiovisuais.

Professora da pós-graduação da FESPSP, núcleo de Gestão Arquivística. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Pós-graduada em Museologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Membro fundador da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA). Foi funcionária da Cinemateca Brasileira por trinta e seis anos e Coordenadora de Preservação entre 2000 e 2008. Oferece cursos e consultoria na área para diferentes instituições.

Entrevistador

Simone Silva Fernandes

Simone Silva Fernandes

Editor de contenidos en Archivoz Magazine

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), possui graduação em Faculdade de Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atualmente é técnico documentalista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Tem experiência nas áreas de História e das Ciências da Informação, com ênfase em História Contemporânea, em História do Brasil e em Arquivologia. Atua em Centros de Documentação e Memória, sobretudo no tratamento da informação e na difusão cultural de acervos.

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