Entrevistámos Paulo Tormenta Pinto, Professor Catedrático do ISCTE e Investigador Integrado do Dinâmia/CET, exercendo atualmente as funções de Diretor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo do ISCTE.

 

(ARCHIVOZ) O seu CV é notável e bastante diversificado, do ponto de vista académico, que culminou no doutoramento em Teoria e História da Arquitetura, na Universitat Politecnica de Catalunya – Escola Tecnica Superior de Arquitetura de Barcelona, em Espanha, à sua experiência docente no Ensino Superior, mas também no trabalho que tem desenvolvido em inúmeros projetos, à vasta obra que tem publicada e à sua atividade como arquiteto, em que tem projetos distinguidos e premiados. Fale-nos um pouco do seu percurso formativo e profissional até chegar a Diretor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo do ISCTE-IUL.

(Paulo Tormenta Pinto) Concluí o curso em 1993, nessa altura estávamos a dar os primeiros passos no processo de adesão à União Europeia era um tempo de mudança com muitas oportunidades em aberto. A sociedade portuguesa estava num processo de consolidação do processo democrático. Logo em 1994, tive a oportunidade de integrar, o Departamento de Construção de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa. Este organismo era herdeiro do GTH (Gabinete de Construção de Habitação), serviço criado na década de 1960, com o objetivo de produzir os projetos de expansão da cidade para oriente, nomeadamente os bairros dos Olivais norte e sul e Chelas. Na época em que entrei para o Gabinete, estava a iniciar-se o PER – Plano de Especial de Realojamento. A decisão da Câmara, na altura presidida por Jorge Sampaio e depois por João Soares, passava pela produção interna da maioria dos projetos que iriam erradicar as zonas de barracas que existiam na cidade. Ainda com pouca experiência, tive oportunidade de desenvolver e construir dois projetos de grande dimensão – o conjunto Rego zona C, com 84 fogos, na Rua Soeiro Pereira Gomes e o Bairro da Travessa Sargento Abílio, com 91 fogos no Calhariz de Benfica, este último distinguido com prémio INH 2002. Na mesma altura em que produzia estas obras, iniciava o périplo em Barcelona, realizando o Master La Cultura de La Metropolis e depois o Doutoramento. O Master foi um processo decisivo na minha formação. Tratava-se de um programa coordenado por Ignasi de Solà-Morales, cujas aulas eram concentradas em dois anos, entre os meses de maio e julho. A organização do curso, permitiu-me rumar a Espanha em 1995 e 1996, dispondo de licenças de curta duração, sem perder o vínculo com a CML. Em Barcelona fazia-se o debate crítico sobre as transformações da cidade na sequência dos Jogos Olímpicos. O curso promovia debates cruzados entre os campos da arquitetura e da arte, tendo a episteme da contemporaneidade como pano de fundo. Terminado o Master, comecei a dar aulas em 1997 na Universidade Lusíada, iniciando também alguns projetos no meu próprio escritório, a Central Rodoviária de Rio Maior é desse tempo. Em 2001, rumei de novo a Barcelona, para fazer o Doutoramento. Nessa altura interrompi tudo o que estava a fazer em Portugal, foram 4 anos muito intensos, a viver maioritariamente em Barcelona. A minha tese de doutoramento foi antes de tudo uma oportunidade para produzir uma espécie de historiografia crítica da arquitetura portuguesa do século XX, através da figura ímpar de Cassiano Branco. Defendi a tese em dezembro de 2004, retomando a atividade docente. A CML ficou para trás, deixando grandes recordações. Em 2006 respondi a um concurso para professor no ISCTE e cabei por entrar. Era um tempo de refundação da área de arquitetura, que se estava a consolidar no contexto daquela instituição referenciada pelas ciências sociais. Acabei por ser eleito Presidente do Departamento, cargo que ocupei entre 2007 e 2010. Em 2011, fundei o curso de doutoramento Arquitetura dos Territórios Metropolitanos Contemporâneos, programa que dirigi até 2017. Em 2019 fui novamente eleito Diretor o Departamento de Arquitetura, cargo que ocupo atualmente.  Pelo meio de tudo isto mantive uma produção constante de projetos de arquitetura, realizando, nomeadamente a reabilitação do Bairro do Lagarteiro no Porto, inserido na Iniciativa Bairros Críticos, projeto que foi distinguido com o Prémios IHRU 2012 e com o Prémio Nuno Teotónio Pereira 2016 (Menção Honrosa).

(ARCHIVOZ) Considerando o seu extraordinário percurso científico, sendo na atualidade Professor Catedrático do ISCTE e Investigador Integrado do Dinâmia/CET, tem estado, de há longos anos para cá, muito próximo do mundo dos arquivos. Como é que foi o seu primeiro contacto com esta mundo, que imagem é que nos pode apresentar, em jeito de retrospetiva, dos mesmos nessa altura?

(PTP) O meu contacto com os arquivos foi intenso no período em que estava a fazer o doutoramento, testemunhando as grandes diferenças que se colocavam entre a situação em Barcelona e a situação de em Lisboa. No caso de Barcelona, havia uma organização incrível dos arquivos de arquitetura, com grande facilidade de acesso e com grande qualidade arquivística. Situação que contrastava com o que se passava em Lisboa. Na época o Arquivo Municipal estava nas caves dos edifícios habitacionais do Alto Eira, muito vulnerável e pouco acessível. No período em que mais precisava do arquivo, este acabou por fechar devido a uma praga que atacou espólio da Câmara de Lisboa. Acabei por usar o Arquivo do Arco do Cago, que tinha grande parte do material que necessitava microfilmado. Esta lacuna da Câmara de Lisboa, contrastava, apesar de tudo com os arquivos da Gulbenkian, da Biblioteca Nacional e da Torre do Tombo, os quais usei bastante nesse período. Posteriormente o Arquivo Municipal passou para o Bairro da Liberdade, com um serviço mais qualificado, mas ainda assim distante do potencial e da importância que devia ter. Durante um período consultei também o arquivo do Forte de Sacavém, atualmente na esfera da DGPC, testemunhando o potencial que técnico e logístico que detém, nem sempre tão acessível como seria desejável. Esta situação é particularmente sensível no caso da preservação dos espólios de arquitetos, lacunas que são contrabalançadas o papel relevante de instituições como a Casa da Arquitetura ou a Fundação Marques da Silva, no Porto, têm vindo a adquirir.

(ARCHIVOZ) Por vezes ainda parecem existir alguns equívocos sobre o que é a arquitetura, um arquivo de arquitetura e um documento de arquitetura. Pode clarificar-nos, do ponto de vista conceptual, apresentando exemplos, esta questão, indicando-nos, também, qual o objetivo dos arquivos de arquitetura e quem são os produtores dos documentos de arquitetura?

(PTP) A arquitetura contém ambiguidades na circunscrição exata dos limites desses 3 conceitos. A obra construída é o produto fundamental da produção arquitetónica.

Sem colocar de parte o valor e a importância patrimonial e cadastral subjacente à edificação, é importante valorizar a relevância da fecundidade teórica da arquitetura. Este fator está diretamente relacionado com o debate crítico em torno dos documentos que servem de base à edificação – desenhos, esquissos, maquetas, textos, etc. Tudo isto alimenta um discurso, eu diria inesgotável e resiliente, desta disciplina milenar que reflete ao longo do tempo a consciência e a composição da sociedade, a inovação tecnológica e a transformação da paisagem. Ou seja, a obra construída necessita de um arquivo de memória, para que seja viva e para que cumpra na plenitude o seu papel e o seu compromisso público. Se a tríade – obra, documento, arquivo – não se alimentar mutuamente temos um empobrecimento que se vai refletir na própria consciência social sobre o valor do território que habitamos, situação que naturalmente se espelhará de seguida na própria economia.

(ARCHIVOZ) Coordenou no ISCTE o projeto de investigação “O Lugar do Discurso” dedicado à investigação sobre as publicações portuguesas especializadas em arquitetura ao longo do século XX. O que nos pode divulgar sobre os principais resultados e evidências deste projeto?

(PTP) O Lugar do Discurso permitiu tomar consciência da construção da crítica de arquitetura no século XX em Portugal. No início do século, ecoava o debate sobre a “Casa Portuguesa” em contraponto com as novas materialidades e figurinos internacionais, visíveis nas duas edições de referência de Nunes Colares – Construção Moderna e Arquitetura Portuguesa.  Depois, passámos para um tempo em que os industriais da cerâmica tomam as rédeas do debate, no final da década de 1930 – Júlio Martins e Tomás Colaço, na Arquitetura Portuguesa e Cerâmica e Edificação Reunidas, dão corpo a um discurso conservador, menos erudito, que se mistura com posições ideológicas face ao regime estadonovista. Posteriormente a consolidação de um corpo crítico na década de1950, na revista Arquitetura, com figuras como Nuno Portas e Carlos Duarte, ou na Binário protagonizada por Manuel Tainha. É interessante depois perceber os conflitos pós-modernistas, até aos incontornáveis números do JA – Jornal dos Arquitetos onde, nomeadamente, a direção de Manuel Graça Dias vai marcar toda uma linhagem de erudição e ligação do discurso às áreas da literatura e da cultura.

(ARCHIVOZ) É Investigador Responsável do projeto “Grandes Trabalhos – Transformações Arquitetónicas e Urbanísticas depois da Exposição Mundial de Lisboa de 1998”, financiando pela FCT. Pode dar-nos conta do ponto em que se encontra este projeto?

(PTP) Este projeto de investigação encontra-se em curso, e tem estado a funcionar como um poderoso instrumento de análise das transformações urbanas que ocorreram nos últimos 20 anos, após o “laboratório” da Expo98. Estudamos 3 escalas, a nacional a a regional e a local. A escala nacional, é estudada através dos programas POLIS em 28 cidades, intervencionadas com a interferência estratégica da Parque Expo – um programa de grande abrangência, bem-sucedido na maioria dos casos, que catalisou mudanças significativas em cidades como Leiria, Bragança, Viseu, Castelo Branco, etc. A nível local e regional a situação é mais complexa, verificando-se uma transformação significativa da cidade Lisboa, que foi expandindo, sobretudo na faixa ribeirinha, os mesmos conceitos urbanos do recinto da exposição, através de operações de espaço público e obras de arquitetura de referência. Esta situação contrasta com as incertezas associadas à área metropolitana, onde se verificam, vários territórios expectantes designadamente junto ao estuário do Tejo. Se por um lado um sentimento de progresso e cosmopolitismo granjeado pela Expo98 parece permanecer no ideário de alguns decisores públicos e investidores privados, como valor simbólico de progresso, o que é certo é que as demandas contemporâneas nos colocam novos cenários. Os valores ambientais e ecossistémicos emergem de modo incontornável, impondo toda uma nova consciência sobre o valor intrínseco destas áreas pós-industriais.

(ARCHIVOZ) Tendo em conta a pergunta inicial, e a vasta currículo como Investigador Responsável e Coordenadora Científico de projetos nacionais, como é que vê o futuro dos arquivos de arquitetos e de arquitetura em Portugal, e quais é que entender serem os grandes desafios que os profissionais da informação (arquivistas) têm de enfrentar, ao nível da organização, preservação e comunicação da memória desses acervos?

(PTP) Os arquivos são no mundo contemporâneo instituições de grande importância e muito valorizadas. Numa altura em que as a revolução digital nos traz novos desafios e uma aceleração muito grande do tempo e espaço, assistimos também à guerra pela informação. O arquivo é em certa medida a base da própria revolução digital, associada à chamada economia 4.0, que está a promover todo um processo de organização social, fortemente acorado na relevância dos arquivos.

Esta situação, que por um lado pode comportar contornos negativos e perversos, por outro deve ser vista como uma forma democrática de resiliência em relação a narrativas pré-estabelecidas ou tratadas de forma superficial. No campo da arquitetura, há muito a fazer, há muito a estudar, há muito a comunicar.

(ARCHIVOZ) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 colocaram novos desafios aos serviços de informação arquivística (arquivos), fazendo com que os seus responsáveis e colaboradores tivessem de se adaptar a novas metodologias e formas de trabalhar. Procurando fazer uma análise desta nova realidade, que começou em meados de março de 2020, pensa que, grosso modo, as instituições portuguesas que têm à sua responsabilidade arquivos de arquitetos e de arquitetura, foram capazes de se adaptar e responder eficazmente aos desafios e oportunidades surgidas?

(PTP) A crise sanitária colocou em evidência as lacunas que já existiam anteriormente. As dificuldades de funcionamento impostas pela pandemia tornaram-se menos possíveis de assimilar, expondo as instituições a dificuldades que antes podiam ser contornadas sem as limitações do confinamento. Por outro lado, deve também mencionar-se que a crise pandémica, evidenciou a uma grande capacidade de adaptação da sociedade, que na sua esfera privada, encontrou mecanismos para manter as instituições e as empresas em funcionamento – o que evidenciou o compromisso cívico por parte das pessoas em relação a valores coletivos.

Os problemas que se verificam, são em última análise estruturais. Temos capacidade técnica e recursos humanos disponíveis. Neste sentido, esperamos que o Plano de Recuperação e Resiliência, venha a colmatar as deficiências logísticas e de funcionamento dos arquivos, criando condições para investimentos estruturantes nesta área que como tentei explicitar, deve ser vista com importância no desenvolvimento de economia nacional.

(ARCHIVOZ) Finalmente, tanto quanto possível, gostaria que nos informasse sobre os seus projetos futuros, naturalmente indesligáveis dos arquivos, em termos de investigação, e do Dinâmia/CET, de que é Investigador Integrado.

(PTP) Neste momento aguardo os resultados de financiamento de dois projetos de investigação submetidos à FCT, que pretendem prolongar a investigação relacionada com o projeto dos “Grandes Trabalhos” que estamos a concluir. No campo dos projetos de arquitetura é, no entanto onde se verificam mais expectativas sobre o papel dos arquivos, visto que temos dois projetos em curso no centro histórico do Porto, considerado pela UNESCO como património da humanidade. Tem sido muito interessante descobrir todas as camadas de história inerentes aos locais de intervenção e ao edificado envolvente. Uma das intervenções em Miragaia, corresponde a parcela onde se descobriram vestígios do período romano, percebendo-se o acerto urbanístico do acerto da cidade decorrente do plano Almadino. A outra intervenção está integrada na cintura da antiga judiaria do Olival, próxima do Convento de São Bento da Vitória, também aqui se verifica um palimpsesto de várias camadas de tempo. Estes projetos, para além da sua dimensão arquitetónica e disciplinar, permitem percecionar os temas associados às políticas municipais de habitação, uma vez que se inscrevem nos programas de renda acessível desencadeados pela autarquia, também com o objetivo de controlar a crescente gentrificação que antes da pandemia, consumia sobretudo o centro da cidade.

Imagem cedida pelo entrevistado:
BALCK, Georges, (1813). Planta Redonda da cidade do Porto. Porto: Arquivo Municipal do Porto


Entrevista
realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista

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