(Archivoz) Fale-nos um pouco do seu percurso formativo e profissional na Administração Regional Autónoma, mais especificamente na Direção Regional do Orçamento e Tesouro da Secretaria Regional das Finanças do Governo Regional da Madeira, no âmbito da gestão da informação.

(L. S. Ascensão de Macedo) O meu contacto com os arquivos começou muito cedo, sem grande consciência do que estes documentos significavam: os álbuns de fotografias e a correspondência familiar. Por ter nascido na ilha da Madeira (1978) e por toda a minha infância ter sido na Venezuela, estes documentos eram memórias construídas pela distância do Oceano.

Quando regressei à ilha da Madeira, em 1987, frequentei o ensino básico na Ribeira Brava, fiz o ensino secundário e o Conservatório de Música no Funchal. Recordo que o meu primeiro contacto com os arquivos foi no então Arquivo Regional da Madeira, que funcionava no Palácio de São Pedro, à rua da Mouraria, no Funchal. Apesar dos olhares surpresos e sisudos dos investigadores que lá se encontravam, mais atentos a mim do que à pesquisa que estavam a realizar, com uma sala de consulta muito apertada e um soalho insuportavelmente ruidoso, compulsei, sem conhecimentos de paleografia, um registo paroquial da igreja de São Bento da Ribeira Brava. Estava à procura de informações sobre os meus bisavós e trisavós maternos e paternos (sem grande sucesso). Nessa altura, recordo, tinha por volta de 15/16 anos de idade. Gosto de acreditar que o “bichinho” pelos arquivos começou por aí.

Mais tarde, fui colocado em Lisboa, em 1998, onde fiz a licenciatura em Línguas e Literaturas Clássicas e o Ramo de Formação Educacional na mesma área, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lecionei como professor do ensino básico e secundário em Sintra e Oeiras.

Por sugestão de uma colega de curso, fiz a pós-graduação em Ciências Documentais, op. Arquivo, na Universidade de Lisboa. Depois de concluir a pós-graduação, voltei para a ilha da Madeira e, em 2009, entrei para Secretaria Regional do Plano e Finanças. Deparei-me com um cenário de que tudo estava por fazer no domínio dos arquivos. Depois, entendi que tinha de adquirir novas competências académicas em função dos desafios profissionais que se me apresentavam pelo caminho. Assim aproveitei para realizar uma pós-graduação em Gestão e Administração Pública (Universidade Autónoma de Lisboa) e um mestrado em Ciências da Informação e da Documentação, op. Arquivo na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Transitei em 2018 da carreira geral para a carreira especial de Técnico Superior do Orçamento e Finanças na Direção Regional do Orçamento e Tesouro, onde estou a assumir novos desafios, como responsável da Divisão de Arquivo Geral e Planeamento, na governança de informação de uma entidade que atua de modo transversal em todos os setores da vida económico-financeira da Região Autónoma da Madeira.

Conclui em 2022 o doutoramento em Ciência da Informação na Universidade de Coimbra, orientado pelos meus queridos Mestres, os Professores Doutores Maria Cristina Vieira de Freitas e Carlos Guardado da Silva. Atualmente sou investigador integrado do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no Grupo de Ciência da Informação, coordenado pelo meu Amigo, o Professor Doutor Carlos Guardado da Silva. Participei recentemente no estudo sobre Os profissionais de informação nos arquivos municipais em Portugal: identificação e caraterização (2023), coordenado por Carlos Guardado da Silva, Luís Corujo, Jorge Revez e Joaquim P. Gonçalves, na parte que me coube sobre os municípios das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores.

Além disto, sou docente convidado no curso de Pós-graduação em Promoção e Dinamização Cultural e Educativa de Arquivos e Bibliotecas da Autónoma Academy, onde leciono Financiamento e Mecenato, graças ao generoso convite do Professor Doutor Paulo Batista, o que tem sido uma experiência extraordinária, desafiadora e muito gratificante.

(Archivoz) Referiu a recente publicação Os profissionais de informação nos arquivos municipais em Portugal: identificação e caraterização (2023). Que conclusões retira deste estudo?

(L. S. Ascensão de Macedo) Quando o Professor Doutor Carlos Guardado da Silva me convidou para participar neste estudo, eu já tinha há algum tempo curiosidade em conhecer a condição destes serviços, em particular nos trinta municípios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Os resultados destes municípios insulares e ultraperiféricos seguem, de modo genérico, a tendência nacional, o que é uma realidade inquietante: carestia de profissionais formados em Ciência da Informação, um corpo profissional predominantemente feminilizado, envelhecido e a prevalência da ausência de serviços de arquivo municipal abertos ao público. Se isto é assim, então como será implementada a Portaria n.º 112/2023, de 27 de abril, sem profissionais qualificados no terreno? Que dizer sobre as condições de conservação destes acervos, onde não existe formalmente um serviço de arquivo municipal? Que dizer, ainda, sobre a realidade económico-financeira em que estes serviços subsistem?

Dos onze municípios da Madeira, realidade que melhor conheço, só existem formalmente dois arquivos municipais, Funchal e Santa Cruz. Enquanto no Funchal existe pelo menos um profissional formado em CI, Santa Cruz não possui qualquer profissional formado na área. Não posso considerar que certos serviços de expediente e arquivo possam alguma vez equiparar-se a arquivos municipais, apesar de estes abundarem. Se bem que no caso da Madeira possa haver uma justificação histórica, estreitamente relacionada com a fundação do Arquivo Distrital do Funchal a 30 de julho de 1931 (não a 27 de junho, como erradamente a Assembleia Legislativa da Madeira propôs com a Resolução n.º 456/2020, de 15 de junho, ao justificar a criação do Dia Regional dos Arquivos e do Património Documental), os fundos documentais de conservação permanente dos onze municípios deste arquipélago se encontram atualmente na Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira (DRABM). No entanto, esta realidade não impediu uma mudança de paradigma, resultando na criação de arquivos municipais, apesar de grande parte da documentação histórica estar sob posse e propriedade do Governo Regional da Madeira (!). Como é que isto aconteceu? Uns foram adquiridos coercivamente pelos serviços antecessores à DRABM, outros preferiram abrir mão aos seus acervos documentais porque os membros do executivo camarário os viam como pesos mortos. A situação mais incompreensível para mim é da ilha de Porto Santo: seria melhor ter um arquivo municipal ou uma delegação de serviços do Governo Regional da Madeira em matéria de arquivos e bibliotecas in situ? Mas há casos em certos municípios (como em São Vicente) de profissionais que obtiveram formação em Ciência da Informação e que não estão integrados supositiciamente em áreas estratégicas das suas organizações, pelo simples facto de estas pessoas apenas terem pretendido transitar de categoria de assistente técnico para técnico superior mantendo-se no mesmo serviço de sempre. Serão melhores profissionais da informação nas áreas em que sempre estiveram? Tenho dúvidas.

No caso dos Açores, devido à sua dispersão arquipelágica, temos um pouco de tudo. Existem conjuntos documentais de conservação permanente na custódia de serviços de arquivo sob jurisdição da administração regional autónoma (como o caso da Horta), assemelhando-se ao caso da Madeira. Embora existam dois arquivos municipais abertos ao público, Ponta Delgada e Ribeira Grande, verifica-se, em alternativa, uma interessante tendência, que ocorre também no continente: Bibliotecas Municipais a custodiarem acervos arquivísticos de conservação permanente (como nos municípios de Vila do Porto, Vila Franca do Campo e Lagoa). Vejo a junção funcional de arquivos e bibliotecas municipais em ilhas com menor densidade populacional como uma interessante emulação em relação a estruturas congéneres nos Governos Regionais de ambos os arquipélagos. Pessoalmente defendo que cada ilha deveria ter direito ao seu arquivo central, um pouco à reboque do modelo das Canárias. No entanto, a convivência dos arquivos com as bibliotecas públicas pode ser um elemento interessante a explorar e a valorizar pelos munícipes e pelos eleitos locais.

O que é de lamentar – para não falar da ausência de candidaturas por parte dos municípios insulares ao Programa de Apoio à Rede de Arquivos Municipais (PARAM) – é o facto de as verbas atribuídas para a gestão da Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas (DGLAB) no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) terem contemplado apenas as bibliotecas municipais em detrimento dos arquivos municipais, para que estes também pudessem participar no repto da transição digital. Não posso aceitar o costumeiro argumento da carestia de verbas. Trata-se de uma conceção deficiente ou pouco equitativa dos programas de financiamento destinados a estes setores.

(Archivoz) É membro do Grupo de Peritos para o Património Arquivístico Partilhado do Conselho Internacional de Arquivos (Paris) e do Grupo de Peritos RIBEAU-ALA (Rede Ibero-Americana de Ensino Universitário em Arquivo), para além de ter sido membro da Comissão Executiva para a Modernização Administrativa do Governo Regional da Madeira. O que nos pode dizer sobre o trabalho que desenvolveu nestes contextos?

(L. S. Ascensão de Macedo) No arquipélago da Madeira, somos uma comunidade profissional ainda diminuta, pouco coesa e com muitas carências. Não temos acesso às oportunidades profissionais e académicas que existem, por exemplo, nas grandes cidades do continente português. Contactar com colegas do continente e de diversas partes do mundo (e aprender com eles) é como “desinsularizar”.

A minha participação no Grupo de Peritos para o Património Arquivístico Partilhado do Conselho Internacional de Arquivos, liderado por Njörður Sigurðsson (Arquivo Nacional da Islândia), ao lado de colegas do Reino Unido, Trinidad e Tobago, Benim, Países Baixos, México e Croácia, é um enorme privilégio. Sou o único português neste grupo. Além das reuniões (online), o grupo, dentro das medidas das suas possibilidades, já apresentou um número razoável de deliverables, desde o relatório (2020) realizado pelo professor e investigador australiano James Lowry (Queens College, City University of New York), seguindo o relatório de Auer, publicado em 1998, sobre o fenómeno dos arquivos deslocados até uma base de dados bibliográfica sobre património arquivístico partilhado e/ou contestado. Da minha parte, contribui para dar a conhecer a realidade lusófona, onde temos alguma experiência no âmbito da herança conjunta, como o Projeto Resgate e a COLUSO (Comissão Luso-Brasileira para Salvaguarda e Divulgação do Patrimônio Documental) entre Brasil e Portugal. Certamente que o caso da Madeira versus Arquivo Nacional da Torre do Tombo suscitou imensa curiosidade não só entre os meus pares do Grupo de Peritos como também pela comunidade científica internacional por motivo da publicação do relatório de Lowry, como já mencionei.

Sobre a minha integração no Grupo de Peritos RIBEAU-ALA (Rede Ibero-Americana de Ensino Universitário em Arquivo), liderado pela Professora Doutora Anna Szlejcher, devo ao generoso convite da Professora Doutora Maria Cristina Vieira de Freitas (Universidade de Coimbra), sendo, também, membro associado da Asociación Latinoamericana de Archivos.

No que respeita à minha participação na Comissão Executiva para a Modernização Administrativa do Governo Regional da Madeira, foi uma experiência agridoce. Podemos conceber um excelente plano estratégico e um plano de ação do programa de modernização da administração pública regional, o Simplifica, mas tudo depende da capacidade de as partes envolvidas promoverem as necessárias mudanças. Sendo um trabalho de equipa, muitas das propostas da minha lavra foram integradas no referido programa, por exemplo, a criação da figura do Provedor da Administração Pública Regional e do Portal de Dados Abertos da RAM, que já estão no terreno. No que concerne aos arquivos, encontra-se no Simplifica as linhas de ação principais: conhecer a realidade dos arquivos da administração regional autónoma e atuar no sentido de transformar pesos mortos em ativos de informação. Desde o último censo feito aos arquivos da RAM em 1996/1997, pouco mais tem sido feito para fazer face aos problemas que a administração regional autónoma enfrentava e enfrenta. E aqui vem a parte acre. Por exemplo, a implementação da Plataforma CLAV Classificação e Avaliação depende da participação do órgão de gestão da política arquivística da RAM (neste caso, a Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira) na DGLAB. Apesar de já existirem serviços do Governo Regional da Madeira a utilizarem o modelo de classificação e avaliação da CLAV, como a Direção Regional do Orçamento e Tesouro, com a sua Portaria n.º 142/2023, de 13 de março – a primeira instituição a usar a CLAV no Governo Regional da Madeira – lamentavelmente, a DGLAB não aceita entidades individuais da administração regional autónoma na rede CLAV. À interoperabilidade semântica faltou a interoperabilidade institucional e jurídica. Mas como não precisamos de inventar a roda da gestão orientada por processos, muito menos da classificação, quando temos à nossa disposição instrumentos de gestão da informação arquivística com elevada maturidade, com CLAV ou sem CLAV as instituições têm de seguir em frente. Além disto, inscrevi o “Arquivo Único” no programa Simplifica, onde se previa a identificação de todas as unidades produtoras e custodiantes de arquivos de modo a facilitar o processo de transição digital, implementar as novas orientações para a proteção de dados, de acesso à informação, de preservação física e digital como forma de salvaguardar o património arquivístico de modo integrado. Numa Região pequena como a Madeira, sem a dispersão arquipelágica como vivenciada nos Açores, tratava-se de um projeto exequível, mais ainda, contando com uma Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira que acumula a função de órgão de gestão dos arquivos da RAM. Mas não: tudo indica que este arquivo único estará sob a tutela da Direção Regional de Informática (por causa da execução dos projetos do PRR afetos ao Governo Regional da Madeira) e não da Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira… Em última análise, a realidade arquivística da administração pública madeirense, permitam-me o símile, ainda que exista uma grande sala de espetáculos, é como uma orquestra sem maestro e sem partitura… cada um toca o Bailinho da Madeira como sabe e pode.

(Archivoz) Em maio de 2022 defendeu, com absoluto brilhantismo, a sua tese de doutoramento, em Ciência da Informação, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com o título Identificação e reunificação dos fundos madeirenses dispersos entre o Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira e o Arquivo Nacional Torre do Tombo.  Quais foram as principais conclusões da investigação que desenvolveu?

(L. S. Ascensão de Macedo) A minha participação no Grupo de Peritos para o Património Arquivístico Partilhado abriu-me portas para explorar um tema pouco presente na literatura da especialidade ao nível internacional: o problema de restituição de arquivos em contexto subnacional ou intranacional. Muita da literatura produzida centrou-se em fenómenos internacionais, conhecidos como arquivos deslocados, motivados pelo conflito armado, sucessão de Estados, descolonização ou decorrente do tráfico ilícito, entre dois ou mais países. O relatório de Lowry gerou uma enorme surpresa pela presença de dois fenómenos de reivindicação pela restituição de arquivos dentro de um mesmo país: os casos da Madeira e da Gronelândia. Conflitos pela custódia em contexto subnacional podem ter muitas configurações e diversas etiologias, como os “Papeles de Salamanca” (Espanha) e a disputa entre o Arquivo Municipal de Ouro Preto vs. Arquivo Público Mineiro (Estado de Minas Gerais, Brasil), uns parcialmente resolvidos, outros dormentes, mas igualmente complexos. Em vez de investigar casos longínquos e exóticos, parti para o estudo de uma realidade que me era muito próxima.

O ponto de partida do meu estudo foi a Resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 3/2017/M, 2017-01-12, que recomenda ao Governo da República que tome as diligências necessárias para proceder à transferência dos documentos produzidos por instituições insulares que se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, para o então Arquivo Regional da Madeira. Não se trata de uma reivindicação pós-autonómica: trata-se de um pedido de restituição com mais de um século. Contudo, a Resolução em si possui muitas inconsistências que tratei de identificar.

No contexto de produção do projeto de tese fui advertido que não teria tese se me enfocasse na questão da restituição de arquivos. E ainda bem, pois é um problema de índole político-institucional que, como investigador, me ultrapassava por completo. Devo isto aos meus orientadores, à Professora Doutora Maria Cristina Vieira de Freitas e ao Professor Doutor Carlos Guardado da Silva. Desta forma, infleti a perspetiva na questão da representação da informação arquivística em instrumentos de acesso à informação que descreveram os conjuntos documentais objeto de disputa. O meu propósito não foi no sentido de conceber mais um instrumento de acesso à informação que potenciasse uma representação reunificada dos conjuntos documentais objeto de disputa, como forma de a resolver, mas epistemologicamente muito discutível. Propus-me explorar a causalidade deste fenómeno, i. e., procurar entender sobre o porquê de estes conjuntos documentais nunca terem sido objeto de reunificação (física e/ou digital), explicando como estes conjuntos documentais (parte na Madeira, parte ou na totalidade no ANTT) têm sido descritos ao longo do tempo. As principais conclusões deste estudo, de modo muito resumido, consistem no facto de o conflito pela custódia de arquivos em contexto subnacional não ser mais do que um confronto entre cânones arquivísticos (nacionalista vs. regionalista; continental vs. insular; etc.). Isto é, as entidades custodiantes preferem sacrificar princípios básicos da arquivística (proveniência, ordem original, integridade, etc.), em prol de um outro princípio, o do cânone arquivístico institucional, porque a aquisição destes conjuntos documentais provém de um processo de escolha. Restituir arquivos às comunidades originárias conduziria a uma espécie de descanonização da função institucional de um arquivo, desconsiderando potenciais efeitos multiplicadores que esta restituição poderia ter para estas comunidades no plano científico, educacional, económico, até de revitalização de práticas culturais em risco de extinção, para o bem ou para o mal.  Outro argumento consiste na falácia da restituição digital como estratégia fungível à restituição física.  De facto, os conjuntos documentais objeto de disputa na custódia do ANTT encontram-se totalmente digitalizados (ca. 98%) e acessíveis na web. Mas quem detém a posse física e digital dos artefactos reivindicados é o ANTT, não a comunidade insular, que, segundo a literatura científica, constitui uma estratégia de reapropriação por via das novas tecnologias. Recentemente, a DGLAB promoveu uma restituição digital, apadrinhada pela atual Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira com toda a pompa mediática. Que eu saiba, o que saiu da Madeira para Lisboa no século XIX foram documentos físicos, não documentos digitais. Em sentido oposto, até ao momento, a Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira não só não possui um instrumento de acesso à informação atualizado, conforme regras de descrição arquivística convencionais, como também nunca disponibilizou um único artefacto digital de qualquer um dos conjuntos documentais sob a sua custódia que permitisse um cenário de reunificação digital com os conjuntos documentais custodiados pelo ANTT. Isto está claramente na tese. Mas o mais estranho – e que me gerou não só a mim, mas também aos meus orientadores uma enorme surpresa – é base legal que tanto o ANTT como a DRABM mencionam nos instrumentos de acesso à informação (antigos e recentes) para justificar a transferência e o direito de custódia dos conjuntos documentais pelo ANTT, a célebre Portaria do Ministério do Reino, de 9 de junho de 1886. As conclusões da nossa investigação sobre este aspeto encontram-se no livro Arquivos Deslocados: Arquipélago da Madeira da Coleção Ciência da Informação n.º 20, editada pela Colibri, que concito à sua leitura, contendo atualizações relevantes que não estão na tese.

(Archivoz) Uma parte da sua investigação mais recente incide na representação da informação sobre bens culturais contestados. O que tem sido feito em Portugal, mas também em termos internacionais, sobre este assunto?

(L. S. Ascensão de Macedo) Um dos problemas subjacentes aos arquivos contestados não se restringe apenas a questões de custódia. A forma como estes arquivos têm sido representados, i. e., como estes têm sido descritos em instrumentos de acesso à informação, com ou sem representações substitutas, por meio de microfilme e/ou digitalização, também pode ser alvo de contestação, que pode incidir (ou não) na questão da custódia e de propriedade.

O nosso estudo, co-escrito por mim e pelos Professores Doutores, Carlos Guardado da Silva e Maria Cristina Vieira de Freitas, para a revista Knowledge Organization, incide numa síntese qualitativa de literatura sobre o fenómeno. Este estudo seguiu-se a um outro artigo intitulado “Arquivos deslocados: mapeamento de literatura” (que recebeu o prémio ALA 2022 de melhor artigo científico pela Asociación Latinoamericana de Archivos, em 2023, em Toluca, México), porque não se dispunha de revisões sistemáticas de literatura sobre os tópicos em apreço. Publicamos em conjunto, com os mesmos autores, um capítulo no livro editado por James Lowry em Disputed Archival Heritage (2022), intitulado “Below the Nation State: Power Asymmetry and Jurisdictional Boundaries around the Archives of Madeira Archipelago” (trad. Abaixo do Estado-Nação: Assimetria de Poder e Limites Jurisdicionais em torno dos Arquivos do Arquipélago da Madeira), que é um abregé do nosso livro Arquivos Deslocados: Arquipélago da Madeira (2023).

O que tem sido feito em Portugal? Ainda que a Assembleia da República tenha publicado recentemente um dossiê sobre Restituição de bens culturais (2020), infelizmente, este é um tema tabu, pelas razões que todos nós imaginamos, mas que não poderemos fazer continuamente de conta que o problema não existe. Quando observamos na comunicação social a posição dos Ministros da Cultura sobre esta questão, é frequente focarem-se em artefactos de museu adquiridos em contexto colonial. A identificação dos artefactos que foram retirados dos seus contextos originais e que atualmente se encontram em grandes museus e coleções científicas tem despertado o interesse de grupos de investigação e entidades associativas, como o ICOM-Portugal, em 2021, onde fez uma prospeção sobre a presença de património proveniente de territórios não-europeus nos museus portugueses. É interessante notar como o Ministério da Cultura está aberto à repatriação desse tipo de artefatos, mesmo sem haver contestação conhecida por parte das comunidades originárias. A Universidade de Coimbra também se associou voluntariamente na repatriação de ossadas humanas a Timor-Leste, trazidos para Portugal em contexto colonial para integrar-se como coleção científica. Não vemos a mesma atitude voluntarista por parte das autoridades públicas em relação aos arquivos. Na minha opinião, é estranho, a título de exemplo, como os Arquivos dos Dembos acaba inscrito no Registo da Memória do Mundo da UNESCO, que se encontra parte no Arquivo Nacional de Angola e parte no Arquivo Histórico Ultramarino, sem contestação por parte da comunidade angolana. Se isto tivesse ocorrido num outro país africano – como o Quénia, o Zimbabué ou África do Sul – isto seria matéria de grande escândalo a nível internacional. É que não se trata apenas do direito à memória e à fruição do seu património arquivístico: muitos destes conjuntos documentais removidos suspenderam direitos (de propriedade, de identidade, de direitos laborais, de acesso à informação para múltiplos fins) e não houve, que eu tenha conhecimento, estruturas para a justiça de transição em Portugal, para casos de violação de direitos humanos. Não me parece que a CPLP esteja muito atenta a estas questões, manifestando mais interesse por uma utópica e ucrónica Casa Comum, do que reaver os arquivos que saíram para Portugal em contextos muito questionáveis. Por esse motivo, é importante estudar a causalidade do fenómeno partindo da análise das suas representações, antes de qualquer ação (voluntária ou coerciva) de restituição ou de repatriação de bens culturais, porque esta questão é um terreno muito fértil à desinformação.

No caso dos nossos arquivos públicos, especialmente os arquivos nacionais, convém examinar cuidadosamente a proveniência dos conjuntos documentais que custodiam, porque afirmar que o que é importante para estes acervos documentais é que sejam bem conservados em uma instituição dedicada a esse propósito, ou que os instrumentos de acesso à informação se baseiem em supostos critérios de imparcialidade ou isenção, ou, ainda, em contexto intranacional, se afirme acintosamente “afinal não estamos todos no mesmo País?”, não é, a meu ver, suficiente. Este tipo de posições tende a desvalorizar os argumentos, alguns bastante legítimos, pela restituição de bens arquivísticos. Quando assistimos instituições nacionais a servirem-se da digitalização/microfilmagem como subterfúgio para limitar a restituição física dos arquivos deslocados, ainda que as comunidades reivindicantes se tenham esforçado para criar condições para a sua conservação e proteção, dá imensa vontade dizer, sem eufemismos: “É preciso descolonizar a Torre do Tombo, o Arquivo Histórico Ultramarino e muitos outros arquivos históricos portugueses”! Mas é importante reconhecer que não podemos usar este tipo de argumento para recriminar estas instituições, uma delas multicentenária, pelos acidentados processos de aquisição destes conjuntos documentais. A descolonização arquivística não é mais do que envolver as comunidades nos processos de decisão nas instituições custodiantes com transparência e integridade, corrigir injustiças históricas que apartaram gerações de pessoas aos conjuntos documentais que lhes dizem respeito – que não pode limitar-se exclusivamente à digitalização como um fim em si – participar na revitalização de práticas culturais extintas ou em vias de extinção, enfim, reavaliar os cânones arquivísticos institucionais que geraram estas (e muitas outras) assimetrias. Sobre isto, não dispomos ainda de garantias literárias nem códigos de ética que assegurem a compliance deste tipo de questões em Portugal. Também não perceciono um interesse genuíno por parte da comunidade arquivística lusófona em querer apostar por esta abordagem neo-custodial. Mas isto não me desmoraliza: há mais mundo por descobrir para além de Portugal.

(Archivoz) Também neste ano, co-coordenou, com o Professor Carlos Guardado da Silva, a edição especial do prestigiado Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra – a revista que em Portugal tem a melhor classificação, em termos de factor de impacto, na área da Ciência da Informação, com Q4 (SJR) – subordinado ao tema “Informação, Desinformação e Pós-verdade”. Considerando os extraordinários estudos apresentados, quais foram as principais conclusões deste Volume Extra 1 do BAUC?

(L. S. Ascensão de Macedo) O desafio de criar um volume extra foi proposto pela diretora do Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, a Professora Doutora Maria Cristina Vieira de Freitas, também diretora do Arquivo da Universidade de Coimbra, e pelo Professor Doutor Carlos Guardado da Silva, quando James Lowry me solicitou se era possível realizar uma tradução do seu estudo para português. Digamos, assim, que o texto de James Lowry deu o mote para que se abrisse um volume extra. Surgiu assim o propósito de criar-se o tema da “Informação, Desinformação e Pós-verdade” mas numa perspetiva transversal às ciências (sic) da Informação. Sendo um tema contemporâneo, houve grande recetividade (e muitos elogios) sobre o número extra, atendendo aos contextos disruptivos que nos afetam como sociedade: a pandemia causada pela SaRS-COV-2, a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o problema da isenção política dos órgãos de comunicação social, especialmente quando a desinformação nasce dos hemiciclos parlamentares, …  concita a comunidade científica a não só refletir sobre a causalidade deste fenómeno, mas também a encontrar respostas e soluções que minimizem o impacto da desinformação na sociedade.

(Archivoz) Entre 2003 e 2022 recebeu quatro importantes distinções. O que nos pode dizer sobre as mesmas?

(L. S. Ascensão de Macedo) As distinções ajudam-nos a ter motivação para fazer mais e melhor. A primeira distinção foi no final de licenciatura, onde submeti um trabalho sobre Escritoras Madeirenses do Séc. XIX à Fundação Berardo. Anos mais tarde, este estudo converteu-se num dicionário biobibliográfico de escritoras que abrangia os arquipélagos da Macaronésia (Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde) entre os séculos XV e XX. Venci o primeiro lugar do Prémio Maria Aurora, no âmbito da igualdade de género, com um dicionário biobibliográfico de escritoras do arquipélago da Madeira pela Câmara Municipal do Funchal. Descobri personalidades femininas da Madeira e Porto Santo verdadeiramente extraordinárias e pioneiras, desconhecidas da comunidade insular e nacional.

Enquanto aluno de doutoramento em Ciência da Informação, recebi uma bolsa de mérito da Universidade de Coimbra, por ter sido obsequiado com a média mais alta daquele período letivo.

A última distinção que recebi foi o Prémio ALA 2022 da Asociación Latinoamericana de Archivos, na categoria de artigo científico sobre arquivos deslocados, publicado na revista Brazilian Journal of Information Science em 2019.

(Archivoz) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 provocaram alterações profundas nos serviços de informação em Portugal, desde a organização do trabalho interno, ao atendimento dos utilizadores e à comunicação da informação. Considera que estes serviços souberam responder aos problemas, desafios e oportunidades provocadas por uma realidade tão singular e difícil?

(L. S. Ascensão de Macedo) O contexto pandémico foi, de facto, um verdadeiro teste de stress aos serviços de informação. No contexto de investigação de doutoramento, eu senti muitas limitações (até porque a tese foi escrita em contexto pandémico), desde os constrangimentos das deslocações por avião (não existe transporte marítimo alternativo que ligue a Madeira ao continente), aos custos quase proibitivos dos arquivos públicos em matéria de pedidos de digitalização (e às cegas, por tentativas de acerto e erro), em especial à Torre do Tombo, que estava também com serviços reduzidos. Como arquivista num serviço de arquivo administrativo, senti igualmente constrangimentos pelo facto de muitos dos projetos de intervenção (como avaliação de massas documentais acumuladas) não poderem ser concretizados em regime de teletrabalho no domicílio (era o que faltava levar arquivos para casa!). Toda esta situação expôs as carências de um sector que tendencialmente não estava no radar das necessidades de financiamento público. Com as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), é possível observar que as bibliotecas públicas recebem mais benefícios em comparação aos arquivos, e destes só a aqueles serviços que integram o perímetro da DGLAB. Na minha opinião, foi um mau desenho orçamental e uma oportunidade perdida para promover a transição digital que só pode ser concretizada com profissionais qualificados no terreno.

Na Madeira, a Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira realizou um trabalho excecional em contexto pandémico. Mas as assimetrias permaneceram, porque um departamento desta natureza limitado ao espartilho da “cultura” obscureceu outros âmbitos de atuação em que esta também exercia. Creio, por exemplo, que deveria existir uma extensão de serviços de arquivo e de biblioteca pública na ilha de Porto Santo, como já defendi publicamente em diversos meios. Mas o mainstream político regional persiste numa mentalidade – permitam-me o neologismo – feniculocêntrica (tudo concentrado no Funchal). O património documental só tem mais valor quando está junto da sua comunidade, não longe dela.  Também não vejo a Direção Regional de Informática como entidade vocacionada para a gestão de arquivos em contexto digital, porque o problema dos nossos dias não é no hardware nem no software: o problema das administrações públicas precisa de estar focado na governança de informação.

(Archivoz) Tendo em conta o seu notável percurso e experiência nesta área, como é que vê o futuro dos serviços de informação em Portugal e quais é que pensa que são os grandes riscos, desafios e oportunidades para os seus profissionais?

(L. S. Ascensão de Macedo) Pessoalmente, encaro que esta profissão como aliciante e com imenso futuro a quem queira seguir por esta via. Ainda somos uma família pequena. O maior risco para os profissionais da informação é manterem-se estagnados numa área que está em constante evolução. Na Madeira, infelizmente não existe formação específica no domínio da Ciência da Informação a nível superior, pelo que muitos dos profissionais que exercem atualmente na administração pública insular das duas uma, ou adquiriram formação presencialmente no Continente ou obtiveram o título por via do e-learning através da Universidade Aberta, agora sem continuidade ao nível da licenciatura. Não identifico nos planos da Universidade da Madeira nem do Instituto Superior de Administração e Línguas (ISAL) qualquer intenção de desenvolver um curso neste domínio científico em particular. De momento, só a Pós-graduação em Promoção e Dinamização Cultural e Educativa de Arquivos e Bibliotecas da Autónoma Academy, que funciona em regime de e-learning possibilita a um amplo espetro de perfis de formandos neste domínio, com impacto bastante positivo nos arquipélagos portugueses pelo número de inscritos alcançado. Na Madeira, que eu tenha conhecimento, existem apenas três pessoas com Doutoramento no domínio da Ciência da Informação. Creio que seria interessante explorar a via dos CTeSP, se houvesse disponibilidade de as instituições de ensino superior na Madeira em apostar numa área com demonstrada elevada taxa de sucesso em termos de ingresso profissional. No dia a dia, tenho formado pessoas que, sem formação em Ciência da Informação (superior ou não), demonstraram um interesse genuíno por esta área. No entanto, estas pessoas estão condicionadas por não terem oportunidades para poder interromper as suas vidas particulares e empregos para investirem numa formação superior altamente dispendiosa e que exige dedicação em termos de tempo de estudo no continente.

Agora, há um aspeto que me parece ser urgente: muitos dos planos curriculares que se inscrevem no domínio da Ciência da Informação aparentam ser démodés, a precisar de atualização científica. Estamos a assistir a emersão das Humanidades Digitais, da Ciência de Dados, de uma Ciência de Informação com enfoque predominantemente computacional, que não pode ser incompatível com as áreas das Ciências Sociais e das Humanidades e outros domínios científicos ditos tradicionais. Também as administrações públicas deviam integrar nos seus mapas de pessoal a componente de investigação científica, por ser indispensável nos contextos contemporâneos integrar pessoal altamente qualificado, porque traz enorme valor (que não é só simbólico) para a organização em termos de melhoria dos serviços de informação institucional. É fundamental que as associações profissionais no domínio da Biblioteconomia, Arquivística e Documentação (BAD) não se circunscrevam a perfis exclusivamente profissionais, uma vez que é inegável o aumento de profissionais com mestrado e doutoramento que estão a trabalhar nas administrações públicas e no setor privado, e quem trabalha nesta área na academia, a ciência também é profissão. Não é aceitável que alguém com doutoramento ou mestrado subsista numa instituição pública como assistente técnico, da mesma forma que pessoas com este tipo de qualificações não podem ser equiparadas salarialmente a um licenciado com pós-graduação em Ciência da Informação. Suum cuique.

Imagem cedida pelo entrevistado.

Entrevistado

L. S. Ascensão de Macedo

L. S. Ascensão de Macedo

Divisão de Arquivo Geral e Planeamento da Direção Regional do Orçamento e Tesouro (Madeira)

Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Coimbra. Mestre em Ciências da Documentação e da Informação pela Universidade de Lisboa. Docente convidado pela Universidade Autónoma de Lisboa na pós-graduação em “Promoção e Dinamização Cultural e Educativa de Arquivos e Bibliotecas”. É membro do Grupo de Peritos para o Património Arquivístico Partilhado do Conselho Internacional de Arquivos. É investigador integrado no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É autor do recente livro Arquivos Deslocados: Arquipélago da Madeira (2023). Sobre o fenómeno dos arquivos deslocados, recebeu o prémio ALA 2022.

Entrevistador

Paulo Jorge dos Mártires Batista

Paulo Jorge dos Mártires Batista

Editor de conteúdo en Arachivoz Magazine

Técnico Superior no Arquivo Municipal de Lisboa, de Professor Convidado no Curso de Especialização Arquitetura e Cultura Visual em Lisboa.

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