É sabido que em 1348, quando a peste negra foi deflagrada na Europa, Giovanni Boccaccio escreveu Decameron, uma coleção de 100 contos. Seu enredo trata de sete mulheres e três homens, todos jovens, que fugiram de Florença para um palácio nas encostas de Fiesole, e lá, em restrito confinamento para se protegerem da doença, se entregaram, durante duas semanas, aos prazeres da vida. O historiador francês François Hartog, em seu ensaio “A Covid-19 e as perturbações no presentismo” (2020), especula que a pandemia e o isolamento levaram a que Boccaccio criasse tal enredo e um novo gênero literário, o conto (p.54).

Passado mais de meio século, uma crise pandêmica de proporções globais, ocasionada pelo vírus Covid-19, se espraiou por todo o mundo. Surgido em meados de dezembro de 2019, na China (Wuhan), o vírus já ceifou 5 milhões de vidas pelo mundo. Considerando a avaliação do risco de transmissibilidade do vírus, incidência, gravidade e letalidade, os países em graus e momentos diferentes decidiram pelo confinamento em massa, uso de máscaras de proteção respiratória e de álcool gel e cobertura vacinal.

Segundo François Hartog, para além do salto no tempo entre uma pandemia e outra, existe uma diferença crucial entre o confinamento “à moda antiga” e o da sociedade da informação. A pandemia dos tempos atuais é perpassada pela tecnologia que alterou o significado espacial do termo confinamento. Atualmente é “permitido transpor a fronteira” por meio das ferramentas tecnológicas que modelam novas formas de trabalho, ensino, sociabilidade e sociedade. Hoje falamos de teletrabalho, tele-ensino, telessociabilidade e “telessociedade” (HARTOG, 2020, p.54). Dessa forma, as renovações fizeram com que inexistisse o isolamento absoluto (e quiçá o desfrute dos contos de Boccaccio) e consolidasse um vocabulário que abrangesse uma série de ações realizadas remotamente.

Sendo assim, partimos do pressuposto de que o confinamento foi para muitos uma possibilidade de transposição de fronteiras a partir do uso de tecnologias, e que a telessociabilidade (ou cibersociabilidade) se tornou tanto o lugar de difusão para os arquivos, quanto o de apropriação de uma semântica digital que até então escapava dos arquivistas. Nesse sentido, queremos explorar, ainda que superficialmente, que a expansão de ações formativas e culturais em ambiente remoto vem anunciando a necessidade de um domínio ou criação de um léxico tecnológico mais apropriado para elas.

Podemos deduzir o número significativo de eventos culturais e formativos que ocorreram em ambiente virtual pelo mundo em torno da área de arquivos. Contudo, aqui vamos explorar um evento de reconhecida importância, abrangência e adesão por parte das instituições arquivísticas e arquivistas – a Semana Internacional de Arquivos promovida pelo Conselho Internacional de Arquivos (CIA).

Como sabemos, em virtude do “Dia Internacional dos Arquivos”, comemorado em 09 de junho – data que se celebra a criação do próprio Conselho Internacional de Arquivos, efetivada em 1948 -, o CIA vem fomentando, desde 2009, a “Semana Internacional de Arquivos”, em que organizações de todo o mundo promovem e compartilham seus eventos culturais de maneira articulada com o objetivo de visibilizar e impulsionar arquivos e arquivistas.

Tomando como base o ano que antecedeu a pandemia, em 2019, a “Semana Internacional de Arquivos” teve como tema “Desenhar os arquivos no século XXI”.  O CIA elaborou um ‘mapa interativo’ com 242 registros de eventos programados e realizados em diferentes partes do mundo. As categorias de eventos se delineavam em torno de “exibições”, “projeções de fotos ou filmes”, “palestras ou entrevistas”, “open house day”, “conferências ou seminários”, “workshops”, “entrada livre”, “tour guiado” (visita educativa) e “party” (festa comemorativa) – supondo esses serem termos adequados para as ações presenciais. Para atividades realizadas remotamente, forjou-se a categoria “website or online activity”.

No âmbito dessa categoria “website or online activity” encontramos cadastradas 63 atividades sendo que a França, país sede do Conselho Internacional de Arquivos, liderou com 16 ações remotas, seguindo a China (10), Espanha (9), Ucrânia (7), Itália (3), Croácia (2) e o Brasil (2). Outros países incluíram uma única ação remota, como Alemanha, Eslovênia, Inglaterra, Hungria, Polônia, Portugal, Suíça, Egito, Bahrein, Índia e Taiwan. Não obstante, enfatizamos que por vezes temos de uma ação cadastrada o desdobramento de muitas outras instituições e atividades subordinadas.

Em 2020, no auge da pandemia, a “Semana Internacional de Arquivos” teve como tema “Empoderar as sociedades do conhecimento”. O próprio CIA delineou um programa de 6 “webinars”, apropriando-se então de ferramenta tecnológica para transmiti-los. As categorias de atividades remotas exibidas no mapa interativo foram: “webinar”, “activité en ligne” (atividade online) e “activité en site” (atividade em site) – essas últimas em francês, sem tradução para o espanhol ou inglês. O mapa exibiu 137 ações cadastradas, sendo que 61 eram “atividades online”, 29 “atividades em site”, 10 “webinars” e 10 “projeções pela plataforma YouTube”. Novamente, cabe ressaltar que de uma instituição ou atividade cadastrada podem se desdobrar muitas outras, a exemplo do Arquivo Nacional do Brasil que conseguiu a adesão de 170 instituições brasileiras as quais juntas promoveram 400 atividades virtuais.

Já em 2021, a “Semana Internacional de Arquivos” teve como tema “Empoderar os arquivos” e o CIA promoveu 12 “webinars”, sendo o dobro em relação ao ano anterior, o que revela o afervorado uso desse meio online de interação. Apesar disso, temos um número reduzido de eventos cadastrados e, ao invés de um mapa interativo, o CIA optou por publicar uma lista de 81 entidades e/ou ações culturais[i].

Talvez pela possibilidade de um abrandamento ou encerramento da pandemia, algumas entidades planejaram eventos “no local” como em casos pontuais em Espanha, França, Portugal e Senegal, e “híbridos”, como em Brasil, Lituânia, Japão, Taiwan e União das Comores, e mais uma vez reforçamos que outras tantas atividades culturais podem ter sido desdobradas a cada cadastro. Ainda assim, o léxico tecnológico ampliou-se e categorias como “podcasts”, “seminários web”, “exposições digitais” surgiram e somaram-se aos termos “webinar”, “activité en ligne” (atividade online) e “activité en site” (atividade em site) já delimitados em 2020.

A partir desse olhar ainda que breve, percebemos pelas categorias criadas uma sobreposição de conceitos, a exemplo de “webinars” (web-based seminar), termo cunhado em meados de 1998, que significa uma apresentação educacional online e ao vivo, durante a qual os espectadores participantes podem enviar perguntas e comentários, o que pode incluir aulas, conferências, palestras e seminários realizados em ambiente web, e “seminários web”. Igualmente, percebemos o desmembramento de categorias mais amplas para a elaboração de termos mais específicos, a exemplo de “website or online activity” que se desdobrou em “activité en ligne” (atividade online) e “activité en site” (atividade em site).

A leitura disso leva-nos a perscrutar como a cibersociabilidade vem nos apresentando como um lugar a ser explorado, com um sistema linguístico que enuncia, ao mesmo tempo, a ferramenta tecnológica em uso (aplicativos, sistemas e rede) e a ação que se produz a partir dela, a exemplo do termo “webinar”. Igualmente, nos leva a contemplar o quanto arquivos e arquivistas, à medida que utilizam tais ferramentas e léxicos, podem contribuir para o melhor aprimoramento dos termos e para a elaboração de um vocabulário uniforme e multilinguístico.

Assim como Boccaccio, que na percepção de Hartog (2020) renovou a escrita literária aproveitando-se do confinamento, nós arquivistas também podemos aproveitar tal momento da história para renovar a nossa escrita científica.

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[i] É oportuno dizer que se comparados os anos de 2020 e 2021, houve uma redução de atividades cadastradas. Isso de nenhuma maneira significou o esvaziamento da Semana Internacional de Arquivos e/ou a falta de eventos arquivísticos durante esses dois anos de pandemia; porque sabemos, ainda que não contabilizado, o número expressivo de eventos online (via Instagram, Facebook, YouTube para limitarmo-nos às redes sociais conhecidas) promovidos por arquivos, associações de arquivistas, centros de documentação, centros de estudos, escolas técnicas, universidades, dentre outras entidades culturais.

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