O que buscamos entender ao estudarmos a memória de uma instituição, a partir de seu acervo audiovisual? Qual a importância destes acervos para o movimento cultural local? O pesquisador Adam Vidal afirma que “o fato de que o homem, estando inserido em seu tempo, em um determinado contexto histórico, percebe as coisas através de ‘filtros’ desenvolvidos pelas suas vivências e consequentes críticas e opiniões” (2006).
Após o regime civil-militar instaurado no Brasil nos anos 1960, a cidade do Rio de Janeiro finalmente começava a respirar na década de 1980. Idealizado no ano de 1982, o Circo Voador nasceu em janeiro, em pleno verão, na Praia do Arpoador. Nasceu a partir de uma iniciativa de grupos teatrais e sob uma lona, erguida com ferro e madeira, foram reunidos diversos grupos de teatro, dança e música no palco improvisado.
O Circo imediatamente foi consagrado por todos e deu o pontapé inicial para um novo momento para a produção da arte, mudança de comportamento, valores sociais, estética e liberdade da juventude carioca. “Depois de tanta repressão, o Circo Voador era o infinito”, afirma Maria Juçá, atual diretora e produtora cultural da instituição, em seu livro intitulado “Circo Voador: A Nave”, lançado em 2013. Com o fim da estação, o Circo precisou encerrar suas atividades no local. Sendo assim, o Circo renasceu em outubro do mesmo ano, agora no bairro da Lapa, onde se estabeleceu definitivamente. A reinstalação do Circo Voador na Lapa exerceu e exerce até hoje importante papel no processo de revitalização do bairro.
O Acervo Circo Voador nasceu no mesmo ano da criação da instituição, a partir das filmagens das primeiras edições do “Rock Voador”, projeto idealizado e produzido por Maria Juçá. Com mais de vinte mil horas de registros audiovisuais produzidos e registrados em diversos formatos (VHS, U-Matic, MiniDV, digital), além de uma coleção de fotografias, cartazes, releases e filipetas de divulgação, o Acervo permanece em contínuo crescimento desde o ano de sua criação.
Levando em consideração a relevância do Circo Voador para a cidade do Rio de Janeiro desde a sua criação até os dias atuais, é possível traçar através de seu Acervo um panorama dos costumes da juventude da década de 1980, presenteada com um projeto artístico de grande importância cultural. Através do projeto “Rock Voador”, o Circo transforma-se em um local consagrado, onde a juventude da época se reunia, predominantemente, para shows de rock, um gênero musical nada tradicional na cidade. O evento semanal tornou-se a principal plataforma de lançamentos da geração Rock Brasil, apresentando grandes nomes da música nacional como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana e Celso Blues Boy.
Em 1983, o Circo Voador concedeu à cidade do Rio de Janeiro um presente único para apreciadores do gênero: o 1º Festival Rock Punk Rock Rio-São Paulo, que reuniu mais de 5 bandas dos dois estados e ocorreu por um dia inteiro sob a lona. Um evento rico culturalmente e cujos registros, raríssimos, encontram-se apenas no Acervo Circo Voador.
Em 1996, por conta de um desentendimento político ocorrido durante uma noite com shows de diversas bandas punks, o Circo Voador foi cassado e fechado permanentemente pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O ocorrido é narrado em detalhes por Maria Juçá, produtora da noite em questão, em seu livro. O desentendimento entre a prefeitura e os administradores do Circo durou oito anos, prejudicando tanto a instituição como o público frequentador fiel. Este foi um momento de grande perda cultural para a cidade. Em agosto do ano 2000, o Circo Voador foi reconhecido como Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro e foi determinada a devolução do alvará e o imediato funcionamento do espaço derrubado pela Prefeitura. Depois de mais de sete anos fechado e uma luta judicial que durou cerca de dois anos, o Circo Voador foi reinaugurado na Lapa em 22 de julho de 2004.
Em 2011, após sete anos de reabertura na Lapa, uma equipe especializada dá início ao tratamento e gerenciamento do Acervo Circo Voador. A equipe realizou os processos de organização arquivística, estabelecimento de metodologias para o tratamento do acervo, digitalização e a catalogação dos materiais analógicos que compõem a coleção. Em seus trinta e tantos anos de existência, as fitas VHS que compõem o Acervo Circo Voador passaram por inúmeros locais de guarda, inúmeras mãos e, como todo material de arquivo, sobreviveram com maior ou menor fidelidade às intempéries e ao manuseio humano.
Pelo recorte cronológico, pela natureza dos formatos e pela própria história do Circo Voador, o Acervo Circo Voador divide-se em dois: de 1982 a 1996 (data da interdição da casa) e de 2004 (ano da reabertura) até os dias de hoje. O primeiro recorte é constituído majoritariamente em VHS; e o segundo recorte, em MiniDV e formato digital. O Acervo é composto por lendários shows ocorridos na lona de grandes figuras do cenário musical brasileiro, como Tim Maia, Raul Seixas, Chico Science & Nação Zumbi e muitos outros. Além das filmagens de shows nacionais, o Acervo possui itens analógicos referentes à shows históricos sob a lona, tais como Ramones e a célebre Bob Marley’s Band The Wailers. Todo este material encontra-se digitalizado.
Como meio de divulgação e difusão deste acervo, foi realizado em 2015 o lançamento da primeira edição do catálogo do Acervo Circo Voador. Contemplando os anos de 1982 a 1997, a publicação “diz respeito apenas aos eventos ocorridos no Circo Voador. No entanto, o acervo não se restringe a ele.” (Acervo Circo Voador, 2015, p.10). No ano de 2017, o Acervo Circo Voador lança o seu segundo catálogo, que abrange o período de 2004 a 2009. A publicação destes catálogos teve como objetivo principal criar um raio-x da história do Circo Voador nesses seis primeiros anos de seu segundo voo através de seu acervo audiovisual, e dar visibilidade maior a pesquisadores, fãs e demais interessados às imagens registradas.
Ao iniciar a construção de seu acervo, o Circo Voador converte-se em um local que preserva a própria história, tornando-se assim um ambiente de memória. A cultura alternativa no Rio de Janeiro deixou suas marcas no tempo e na história da cidade ao desenvolver importantes vertentes que construíram sólidos caminhos nas manifestações artísticas brasileiras. Apesar de ser um acervo relativamente desconhecido (talvez por pertencer à uma instituição privada), sua importância e de suas peças raras não passam despercebidas: o Acervo do Circo Voador foi declarado de interesse público e social, por decreto presidencial, em 25 de janeiro de 2018, após avaliação realizada pelo Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ).
Apesar de todas as dificuldades para a seu cuidado e o alto custo de manutenção, desde 2014 diversas das atividades da instituição são ligadas ao acervo e a realização de eventos como cursos e palestras tornou-se algo essencial para a sua difusão. O acervo do circo possui caráter diversificado, e atualmente a instituição também desenvolve oficinas de acrobacia aérea, percussão, capoeira, danças populares, orquestra voadora (sopro e percussão), teatro (para pessoas com deficiência) e todas as atividades são devidamente registradas e integradas ao Acervo.
A documentação desenvolvida pela equipe constituinte do Acervo do Circo Voador mostra o caminho que a informação toma a partir do momento de seu registro inicial. As peças apresentadas neste texto são apenas poucos exemplos de materiais raros que constituem o Acervo Circo Voador. Independente de todas as lacunas, todas as perdas de informação dos suportes, os áudios saltando e as marcas de fita mastigada típicas para quem já trabalhou com imagens em VHS, esse acervo constitui um material de pesquisa, de memória e de energia artística sem paralelo, que carrega as marcas de gerações através das músicas, dos comportamentos, da gestualidade, das vestimentas, e os talentos individuais e coletivos de uma infinidade de artistas que compõem grande parte da singularidade da arte e da cultura produzida no Brasil.
REFERÊNCIAS
- ACERVO Circo Voador: 1982-1997. Rio de Janeiro: Circo Voador, 2015. Disponível em: https://issuu.com/acervocircovoador/docs/catalogo_acervo_cronologia_catalogo/202.
- ACERVO Circo Voador: 2004-2009. Rio de Janeiro: Circo Voador, 2017. Disponível em: https://www.circovoador.com.br/api/wp-content/uploads/2017/acervo-circovoador_2004-2009.pdf.
- BARTOLY, F. S. Da Lapa boêmia à Lapa retificada como lugar do espetáculo: uma análise de dois períodos da história da produção do lugar na cidade do Rio de Janeiro. In: Revista Geográfica de América Central, v. 2, p. 1-13, 2011. Disponível em: http://www.revistas.una.ac.cr/index.php/geografica/article/view/2205.
- CONARQ (CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVO). Acervo do Circo Voador é declarado de interesse público e social. 25 jan. 2018. Disponível em: http://conarq.gov.br/ultimas-noticias/657-acervo-do-circo-voador-e-declarado-de-interesse-publico-e-social.html.
- GUIMARÃES, Maria Juçá. Circo Voador: a nave. Rio de Janeiro, ed. do autor, 2013, 703 p.
- HETTENHAUSEN, Fernando. O Circo Voador e o design gráfico da cultura alternativa nos anos 80. 12º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2016.
- MESQUITA, C.T. Por dentro da nave: um estudo de caso da gestão do acervo audiovisual do Circo Voador, 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Museologia) – Escola de Museologia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
- MONTEIRO, Marcelo. Circo Voador completa hoje 30 anos de Lapa. O Globo, Rio de Janeiro, 2012. Amplificador. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/amplificador/post/circo-voador-completa-hoje-30-anos-de-lapa-lembre-shows-historicos-471740.html.
- SOARES, P.G. Fluxo informacional do documento audiovisual: um estudo de caso do acervo do Circo Voador; 2017. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.unirio.br/unirio/cchs/eb/arquivos/tccs-2017.1/Priscila%20Goncalves%20Soares.pdf.
- VIDAL, Adam Tommy Vasques. História do Circo Voador: Cultura, Sociedade e Democracia no Brasil Contemporâneo 1982/1992. 2005. Dissertação (Mestrado em História Comparada). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=35852.
Brilhante artigo e trabalho realizado pela Carina e sua equipe no Acervo Circo Voador.