Entrevistámos João Miguel Henriques, Chefe da Divisão de Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico da Câmara Municipal de Cascais.

 

(ARCHIVOZ) Fale-nos um pouco do seu percurso profissional até chegar a Chefe da Divisão de Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico da Câmara Municipal de Cascais, cargo que ocupa desde 2016, e quais os serviços de que é responsável pela respetiva gestão.

(João Miguel Henriques) Iniciei a minha atividade em 1999, no Arquivo Histórico Municipal de Cascais, que passei a coordenar no ano de 2005. Em 2013 fui nomeado coordenador do Gabinete de Arquivos Municipais e, no ano seguinte, chefe da Divisão de Arquivos Municipais.  Tenho o privilégio de gerir desde 2015 a Divisão de Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico da Câmara Municipal de Cascais.

Esta unidade orgânica é constituída por 12 serviços: Arquivo Geral Corrente, Arquivo Intermédio Municipal, Arquivo Técnico de Urbanismo, Arquivo Histórico Municipal, Biblioteca Municipal de Cascais, Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana, Biblioteca Infantil e Juvenil de Cascais, Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares, Serviço de Bibliografia e Gestão de Coleções, Livraria Municipal, Serviço de Gestão de Animação Cultural e Núcleo de Património Histórico e Cultural, que incluiu diversos sítios arqueológicos. A multiplicidade de assuntos a cargo dos 80 extraordinários colegas que integram esta Divisão, marcada pela dispersão geográfica dos equipamentos, constitui um desafio absorvente, mas muitíssimo estimulante!

(ARCHIVOZ) No seu extraordinário CV sobressai, no que respeita a publicações, a extensa obra relativa à história e património de Cascais, temáticas sobre as quais comissariou inúmeras exposições, para além da coordenação de encontros, seminários, cursos e visitas guiadas. Gostaria que nos dissesse como é que nasceu o interesse em desenvolver investigação sobre esta lindíssima vila e que destacasse as principais obras escritas publicadas nesse sentido.

(JMH) O meu interesse nasceu do gosto pelas viagens… no tempo, levado pelo desejo de desvendar a forma como o território de Cascais foi sendo formatado até alcançar a feição atual. Queria perceber como uma terra de agricultores, canteiros e pescadores se transformou num dos concelhos mais densamente povoados do país, sob a égide do turismo. Foi essa questão que me levou a estudar alguns dos períodos considerados de transição, como sucederia durante o mestrado, quando me dediquei à história de Cascais entre 1908 e 1914, recolhendo novas fontes para o estudo do movimento republicano e a dissipação da ideia de que a fuga da Família Real afetara o desenvolvimento do concelho.

A investigação transformar-me-ia num utilizador regular do Arquivo Histórico Municipal de Cascais, a cuja equipa teria depois a sorte de me juntar. Já a trabalhar neste serviço pude (co)coordenar diversas obras destinadas a valorizar as preciosas fontes documentais que se aqui se preservam, muitas das quais se materializariam igualmente em exposições, entre as quais destaco Cascais: Do final da monarquia ao alvorecer da República (2001); S. João do Estoril e os Banhos da Poça (2003); Cascais: Aqui nasceu o futebol em Portugal (2004); História da freguesia de Cascais: 1870-1908 (2004); Cascais em 1755: Do terramoto à reconstrução (2005); História da vela em Cascais (2007); D. Carlos de Bragança: Instantes da vida de um rei em Cascais (2008); O passado nunca passa: Coleção José Santos Fernandes (2010); Cem anos a ensinar: Colégio da Bafureira, 1910-2010 (2010); O Estoril e as origens do turismo em Portugal (2011), Da Riviera Portuguesa à Costa do Sol: Fundação, desenvolvimento e afirmação de uma estância turística, 1870-1930 (2011); Branquinho da Fonseca: Um escritor na biblioteca, (2012); História(s) do(s) mercado(s) de Cascais (2014); Cascais: Território, história, memória (2014); 500 anos do foral manuelino de Cascais (2016); 1914-1918: Cascais durante a I Guerra Mundial (2017); Cascais: Associações com história (2018); Grupo Recreativo e Dramático 1.º de Maio de Tires: 100 anos de história (2019) e Cascais: Museu da Vila (2020). Para além de estabelecer ligações com outros arquivos, a maioria destas edições permitiu identificar novos fundos e coleções que viriam a ser integrados no Arquivo Histórico Municipal, onde foram organizados, descritos, parcialmente digitalizados e disponibilizados para consulta pública, alargando, assim, a informação existente acerca da história de Cascais e das suas gentes.

(ARCHIVOZ) Um excelente exemplo desse interesse por Cascais é a sua tese de doutoramento, defendida em 2009, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o título “Da Riviera portuguesa à Costa do Sol: fundação, desenvolvimento e afirmação de uma estância turística: (Cascais, 1850-1930)”. Quais foram as principais conclusões a que chegou?

(JMH) Nesta obra, que resulta de cerca de seis anos de investigação em diversos arquivos e bibliotecas, estudei a história do concelho de Cascais entre os anos de 1850 e 1930. Apesar de a assunção da vila enquanto praia da moda remontar a 1870, com a adaptação de parte da Cidadela a Paço Real, para apoio aos banhos de mar praticados pela Família Real, a necessidade de sociabilização sazonal em novos palcos sociais já conduzia os lisboetas até à região desde meados do século XIX. Esta evolução estendeu-se, depois, a todo o concelho, com particular destaque para o litoral de Carcavelos a Cascais.

O estudo avalia a dinâmica do município no contexto da Regeneração e dos períodos subsequentes, que se caraterizou por um crescimento exponencial até à sua definitiva imposição enquanto destino turístico de primeira ordem, em 1930, na sequência da inauguração do Palace Hotel e da transformação do Estoril na derradeira paragem do Sud Express. A Riviera de Portugal cedeu, assim, lugar à Costa do Sol, que se transformou desde então num dos mais ambicionados locais para estada e residência em Portugal. Desta forma, durante e depois da II Guerra Mundial registar-se-ia a passagem pela região de um elevado número de estrangeiros, aí se fixando, em 1946, os Condes de Barcelona e Humberto II de Itália, e, no ano seguinte, Carol II da Roménia. O velho ditado «A Cascais, uma vez, para nunca mais» fora definitivamente trocado por «A Cascais, uma vez, para muitas mais»…

(ARCHIVOZ) Quais os projetos mais relevantes que coordenou, na qualidade de dirigente do município de Cascais?

(JMH) Entre os projetos mais relevantes que tive o prazer de coordenar destacaria, ao nível dos Arquivos, a reinstalação do Arquivo Histórico Municipal na Casa Sommer, a reformulação do sistema de gestão do Arquivo Técnico de Urbanismo e a criação do Arquivo Intermédio Municipal. A nossa equipa tem também particular orgulho no PRADIM – Programa de Recuperação de Arquivos e Documentos de Interesse Municipal, no âmbito do qual já foi possível acolher, organizar e passar a comunicar 104 arquivos e coleções, muitos dos quais em risco de perda ou desintegração. Este projeto, mercê da generosidade da DGLAB e da CPCCRD, tem-nos permitido colaborar no grupo de trabalho para a constituição de um guia de boas práticas para os arquivos das associações de cultura, recreio e desporto.

Realço igualmente o processo de informatização e desmaterialização dos Arquivos Municipais, que esteve na base do Arquivo Histórico Digital de Cascais e da nova pesquisa integrada das bases dos Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico Municipal que neste momento já faculta mais de 215 000 registos para consulta pública. Para além das exposições e edições sobre história e património do concelho salientaria, ainda, a edição anual do Guia Digital do Arquivo Histórico Municipal de Cascais.

No domínio das Bibliotecas destaco o reforço das atividades de promoção do livro e da leitura, como a abertura diária ao público até às 24h00 enquanto salas de estudo, a aposta na Biblioteca Digital de Cascais e a reorganização da Livraria Municipal. Já no que concerne ao Património Histórico realçaria a inauguração do Museu da Vila, nos Paços do Concelho; a concretização da recuperação da villa romana de Freiria e das cetárias de Cascais; o apoio prestado para a reabertura do Forte de Santo António da Barra e a criação das Rotas online do Património de Cascais.

(ARCHIVOZ) Na sequência da questão anterior, o Arquivo Histórico Digital de Cascais e o RIDC – Repositório de Informação Digital de Cascais (interface para sistemas de informação dos Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico e Cultural municipais) são dois excelentes exemplos da grande aposta no digital, claramente ganha, e na disponibilização dos conteúdos por esta via, que tem sido feita pelo município de Cascais. O que nos pode dizer sobre estas magníficas iniciativas do serviço que dirige?

(JMH) Em 2008, tendo por base o X-Arq, os Arquivos Municipais iniciaram um projeto de informatização, que dois anos depois permitiria o lançamento do Arquivo Histórico Digital de Cascais, disponível em https://arquivodigital.cascais.pt/xarqweb/. A aplicação já possibilita a consulta de quase 100 000 descrições validadas de documentos conservados nos Arquivos Técnico de Urbanismo e Histórico – que se compõe de 131 fundos ou coleções fundamentais para o estudo do passado do concelho – e noutros importantes núcleos arquivísticos municipais, como a Casa Reynaldo dos Santos | Irene Quilhó dos Santos e o Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria. Através desta funcionalidade, diariamente atualizada, passaram a estar acessíveis à distância de um clique descrições e digitalizações de todas as tipologias documentais, entre as quais importa destacar as das requisitadíssimas coleções iconográficas, que comportam milhares de fotografias e de bilhetes-postais ilustrados desde o último quartel do século XIX.

O RIDC – Repositório de Informação Digital de Cascais, interface para sistemas de informação dos Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico e Cultural municipais, foi apresentado em 2019, por ocasião do XIII Encontro de Arquivos Municipais, organizado pela BAD, que tivemos o privilégio de acolher em Cascais. Esta pesquisa consolidada, disponível em https://cultura.cascais.pt/iframe/pesquisa-integrada, tem por objetivo a agregação, no mesmo portal, de toda a informação gerida por estas áreas, a bem da sua difusão, centralizando recursos dispersos sem macular as bases de origem. Trata-se de um serviço desenvolvido para utilizadores externos, que nos permitiu também refletir internamente acerca das muitas ligações que teremos de gizar de forma a potenciar a informação que gerimos, eliminando erros e redundâncias, aproximando linguagens e até desenvolvendo novos serviços. Está, por isso, em constante (re)construção, mas já disponibiliza cerca de 215 000 registos para consulta online.

(ARCHIVOZ) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 provocaram alterações profundas nos serviços de informação em Portugal, desde a organização do trabalho interno, ao atendimento aos utilizadores e à comunicação da informação. Como responsável por uma divisão com cerca de 80 colaboradores, inúmeros equipamentos e iniciativas sempre a acontecer, o que nos pode dizer da sua experiência neste período tão singular e difícil, que infelizmente ainda não terminou. Que desafios e oportunidades gostaria de destacar, desde meados de março de 2020 até ao presente?

(JMH) A partir de 13 de março de 2020, a gestão da Divisão de Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico teve de se adaptar às medidas de confinamento impostas devido à pandemia de COVID-19. A suspensão do atendimento presencial e o surgimento do teletrabalho implicou a alteração das prioridades da maioria das equipas, optando-se, então, pelo reforço do atendimento digital, mas assegurando serviços mínimos presenciais, que se revelaram fundamentais para o fornecimento de informações, realização de pesquisas, requisição de documentação, preparação de processos para digitalização e fornecimento de cópias. Parte substancial dos funcionários passou, assim, a dedicar-se a projetos adaptados às restrições, investindo-se sobretudo na revisão e enriquecimento das bases informáticas e na apresentação de novas ofertas de serviços digitais. Foi este o nosso desafio e oportunidade!

Entre os resultados alcançados mais representativos no domínio dos Arquivos destaca-se a manutenção dos tempos de resposta aos utilizadores internos e externos por parte do Arquivo Geral Corrente e do Arquivo Técnico de Urbanismo. Já o Arquivo Intermédio Municipal concluiu a reorganização digital dos seus depósitos, assegurando, depois, a transferência de novas remessas de documentação e a definitiva separação da documentação de conservação permanente, que transitou para o Arquivo Histórico Municipal.

A aposta no enriquecimento da base de dados traduziu-se num aumento de 49% de novos registos disponibilizados no Arquivo Histórico Digital de Cascais, face a 2019, que integram as 216 736 operações concretizadas em 2020, a intensificar este ano. Incentivando-se sobretudo a reorganização e tratamento de documentação física ao nível do catálogo, promoveu-se também o primeiro Curso Breve de História de Cascais online, que garantiu um elevadíssimo número de participantes, por não ser necessário restringir a audiência à lotação dos auditórios. Neste âmbito procedeu-se igualmente ao lançamento da plataforma digital Nós Casca(l)enses, em que se catalogam e relacionam todos os registos de batismo, casamento e óbito das paróquias do concelho de Cascais entre 1589 a 1911, que conta com 86 781 assentos.

(ARCHIVOZ) Considerando a extraordinária dinâmica que carateriza a Divisão que dirige, quais os principais projetos que se encontram a decorrer e os que estão planeados no decurso deste ano?

(JMH) Ainda com a pandemia a afetar fortemente a capacidade de programação a curto e médio prazo, estamos a proceder ao reforço da nossa comunicação digital, tendo por base uma nova conta de Facebook da Câmara Municipal de Cascais consagrada à Cultura, em que os Arquivos, as Bibliotecas e o Património Histórico são mais destacados, bem como ao desenvolvimento de eventos online, como as Horas do Conto ou os Cursos Breves de História de Cascais, que estão a cativar o(s) nosso(s) público(s).

No domínio dos Arquivos e das Bibliotecas prosseguiremos também o projeto de enriquecimento e cruzamento das bases, desmaterializando ainda mais documentação. Estamos, contudo, ansiosos para voltar a abrir as portas dos equipamentos, todos os dias, nos horários antigos, para reencontrar os nossos utilizadores e regressar aos “números” de 2019, ano em que as Bibliotecas Municipais acolheram 282 822 visitantes, o Arquivo Histórico Municipal aumentou 70% o número de utentes e promovemos mais de 220 iniciativas… De forma a fortalecer a ligação entre Arquivos e Bibliotecas encontramo-nos também a desenvolver um projeto que resultará num novo equipamento cultural, a anunciar em breve!

Já ao nível do Património Histórico, este será o ano do início de importantes obras que culminarão na requalificação dos mais significativos sítios arqueológicos do concelho: as Grutas do Poço Velho e de Alapraia e as Villae romanas de Casais Velhos e do Alto do Cidreira, bem como do Casal Saloio de Outeiro de Polima. Os projetos gizados durante o confinamento vão, pois, materializar-se, em prol do usufruto do nosso património coletivo.

(ARCHIVOZ) Tendo em conta o seu notável percurso e experiência nesta área, como vê o futuro dos arquivos em Portugal e quais é que pensa que são os grandes riscos, desafios e oportunidades para os seus profissionais?

(JMH) Muitas organizações compreenderam finalmente que uma tomada de decisão informada depende da eficiência dos seus arquivos e que um projeto de desmaterialização tem de ser mais uma mudança do paradigma de administração do que um processo de transferência de suporte. Esta é, em minha opinião, uma grande oportunidade para os profissionais da informação que pretendam colaborar de forma ativa na qualificação das instituições a que pertencem, com vista à concretização do ambicionado e-Government, que a aposta no teletrabalho continuará a estimular.

O nosso maior desafio será, assim, colaborar sabiamente na implementação desta mudança, quando muitos dos problemas colocados pela gestão de processos híbridos ou apenas em papel ainda estão por resolver. Os profissionais da informação, aos quais se voltará a exigir grande flexibilidade, necessitarão de estar devidamente informados e de conseguir integrar-se nos processos de discussão e decisão, assumindo-se como dinamizadores dos processos de modernização administrativa.

O reforço da interoperabilidade dos sistemas de informação de Arquivos, Bibliotecas e Museus constitui outro importante desafio. Urge derrubar definitivamente as barreiras que dificultam o acesso e a partilha da informação gerida, em prol da melhoria da resposta fornecida aos utilizadores internos e externos. Para o efeito há que consolidar a partilha de saberes e experiências entre os profissionais da informação, na certeza de que este não é o tempo de nos afirmarmos como ilhas perdidas em mares de pequenos saberes. Chegou o momento de colaborarmos na afirmação de um novo arquipélago de conhecimento, ao serviço de todos!

Imagem cedida pelo entrevistado.


Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista

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