A Sócio-diretora da Tempo&Memória – consultoria especializada em história e arquivo – Flávia Borges Pereira conta-nos em seu artigo sobre a implantação de centros de memória empresariais a partir de uma perspectiva de quem atua no ramo há 36 anos. Além do seu entusiasmo pelo trabalho, apresenta-nos o contexto histórico que emoldura a ideia de patrimônio documental, como um bem a ser preservado e difundido pelas corporações, e a maneira como os termos valor, cultura, identidade e história passaram a fazer parte do vocabulário, do cotidiano e das estratégias empresariais.

Tempo&Memória e a criação dos Centros de Memória Empresariais

A  Tempo&Memória foi criada em 1988 por um grupo de historiadores que buscava novas oportunidades de atuação profissional. Éramos jovens e tínhamos um sonho: trabalhar com prazer e paixão. Gostávamos de ser historiadores. Na verdade, era nossa paixão e por isso acreditávamos que poderíamos contribuir com nossa área de conhecimento para transformar a sociedade e, porque não dizer, o “mundo capitalista das empresas”. Não se espantem, os jovens dos anos 70 e 80 eram realmente muito pretensiosos!

Na época, surgiam os primeiros profissionais que atuavam na área de Memória Empresarial e na organização de Centros de Memória. Essas unidades se disseminaram a partir dos anos 1980, influenciados pelos centros de documentação que, em meados de 1970, eram criados nas universidades e instituições ligadas a movimentos sociais e religiosos, de um lado, e, de outro, a reboque de ferramentas de gestão que enfatizavam e aplicavam modelos incorporando os novos conceitos do marketing social e cultural, baseados em teorias até então restritas aos meios acadêmicos. Desde então, valores, cultura, identidade e história passaram a fazer parte do vocabulário, do cotidiano e das estratégias empresariais. Nesse cenário surgem os primeiros Centros de Memória, almejando ser ferramentas de gestão e negócios.

Diferentemente dos centros de memória universitários que comumente têm como missão a custódia e a disponibilização de arquivos históricos de diferentes origens, visando o desenvolvimento e a produção de pesquisas científicas, os acervos dos Centros de Memória Empresariais são constituídos pelos arquivos permanentes da organização, que além da dimensão jurídica e administrativa, são detentores da informação residual, podendo por isso testemunhar e informar.

São documentos produzidos e acumulados, sobretudo, pelas áreas de comunicação e marketing e por algumas áreas técnicas. Trata-se de uma setorização do arquivo da empresa, que se justifica pela demanda e pelo uso: disponibilizar os documentos e potencializar sua utilização para fins institucionais e culturais. Papéis financeiros, contábeis, jurídicos, de recursos humanos, fórmulas e patentes, geralmente, não compõem o acervo dos Centros de Memória por conterem dados confidenciais. Importante destacar que tal “recorte” no conjunto documental de valor histórico não compromete sua organicidade nem mesmo sua função e fluxo na empresa.

Os documentos desses acervos institucionais são muitas vezes de uso corrente, isto é, servem ainda à dimensão jurídica e administrativa da entidade. Esse aspecto atribui aos Centros de Memória Empresariais um caráter peculiar, com implicações metodológicas e de acesso – como avaliação, seleção e descarte, descrição, níveis de acesso e ferramentas de pesquisa, controles e serviços – pertinentes a especificidade de seu perfil.

Originalmente, tais unidades foram implementadas por empresas familiares, mais sensíveis às questões de preservação da memória institucional por estarem estreitamente relacionadas à história dos fundadores, geralmente ligados à direção ou ao conselho da família. Eram setores voltados para a prestação de serviços internos, fornecendo suporte para as áreas de marketing e institucional. O atendimento ao público externo tinha caráter excepcional. Entre suas atribuições, além do tratamento documental, estava o registro e a produção de ferramentas de pesquisa histórica e o desenvolvimento de ações de divulgação do acervo, como exposições histórico-fotográficas. Como parte do registro histórico desenvolviam programas de história oral, coletando depoimentos que passaram a constituir parte notável desses acervos.

Entre os inúmeros desafios enfrentados pelos Centros de Memória dessa primeira fase, vale destacar a questão do pioneirismo e do dilema a ele associado, inerente à relação desconhecimento/dificuldades versus inovação/vantagens. As empresas que investiram nesses Centros, na década de 1980, constituíam um grupo seleto que anteviu a importância da preservação de seu patrimônio documental que guardava a identidade desses empreendimentos. Elas investiram maciçamente em projetos sem similar, sujeitos a erros e acertos. Mesmo para os profissionais que se iniciaram nessas unidades, os parâmetros metodológicos e técnicos disponíveis eram insuficientes. Não havia interesse das universidades e da comunidade científica, que viam as iniciativas com desconfiança e preconceito. Por outro lado, as empresas que saíram à frente desenvolveram projetos e ações institucionais e de marketing, tornando-se referência para outras e para uma nova área de conhecimento que se delineava.

Com a globalização, nos anos 1990, e a reestruturação do mercado mundial, novos parâmetros passaram a definir as relações comerciais, a inovação, os avanços tecnológicos e as relações sociais no mundo corporativo. Em um mercado caracterizado pela competitividade acirrada, atributos como marca, identidade e sustentabilidade, compreendidos em seu sentido mais amplo de comprometimento com a comunidade e com as pessoas, tornaram-se valores mensuráveis e determinantes para a conquista de consumidores e da liderança no mercado.

Nesse contexto, também os Centros de Memória assumiram novos contornos e atribuições. Tornaram-se importantes ferramentas, sobretudo para a área de comunicação, que no novo cenário foi incorporada às estratégias globais das empresas. Nesse sentido, eles passaram a contribuir para agregar valor à marca das organizações empresariais.

Um segundo desafio dos Centros de Memória Empresariais, presente desde suas origens até hoje, diz respeito à “responsabilidade social e histórica das empresas”. O papel importante das organizações nacionais e transnacionais que aqui se instalaram e se desenvolveram na construção da história e de uma memória coletiva é indiscutível. Todavia, novas premissas sociais e temas focados em questões ambientais e de impactos das transformações culturais e tecnológicas trouxeram novos paradigmas para o debate sobre a atuação dos Centros de Memória e para seu papel na construção de uma narrativa histórica para o Futuro das Empresas. Daí a relevância de se estimular e desenvolver com as empresas, ações e projetos de preservação de seu patrimônio cultural, de forma a garantir impacto social, contribuindo para a formação de uma visão crítica, plural e transformadora das comunidades onde atuam. Essa, sim, é a essência do conhecimento.

Nesse sentido, destacamos a contribuição dos Centros de Memória em dois níveis:

  • Como locais de pesquisa científica, na medida em que disponibilizam fontes documentais, dados e informações.
  • Criando as bases para construção de uma narrativa histórica para o futuro: referência, retratação e reputação. Suporte para a reflexão de uma política cultural e social inclusiva e sustentável.

Para tanto, o desafio que se coloca aos profissionais da área é o de superar dificuldades operacionais e técnicas e aprofundar questões metodológicas que permitam o mais amplo acesso aos acervos, o que em última instância, justifica a existência dessa unidade empenhada em preservar a memória empresarial brasileira.

Se considerarmos os Centros de Memória Empresariais como locais privilegiados de pesquisa, devemos destacar aspectos metodológicos que envolvem conceitos e ferramentas arquivísticas capazes de viabilizar a consulta ao acervo. Não é o bastante termos tais acervos abertos ao público externo. Questões como critérios de organização e descrição; a transparência da avaliação e da seleção dos documentos; especificidades no tratamento de documentos veiculados nos mais diversos suportes tornam-se fundamentais e merecem estudos e pesquisas científicas de maior profundidade, que possam fornecer bases para os profissionais que atuam na área.

Hoje, com Centros de Memória implantados em empresas de vários setores no País, percebo como tudo mudou e de alguma forma acredito que contribuímos para pequenas, mas significativas mudanças. As empresas estão mais sensíveis para a importância da história de suas companhias e do patrimônio cultural do País. A história das companhias se humanizou. Com acervos organizados os historiadores e pesquisadores tem acesso a material de pesquisa e trabalho. As empresas com este perfil se multiplicaram e novos mercados surgiram.

E, o mais importante, “como uma andorinha não faz o verão”, a reflexão sobre o papel e a atuação dos Centros de Memória motivou a reunião de um grupo de empresas, na sede da Fundação Bunge Born, em 13 de maio de 2010, iniciando o primeiro dos encontros da Rede de Centros de Memória Empresarial. Este núcleo criou, em 2018, a Associação Brasileira de Memória Empresarial – ABME, mantendo como principais objetivos a troca de experiências entre os participantes de forma a gerar efeito multiplicador, fomentar a criação de mais Centros de Memória e, sobretudo, contribuir para que eles possam apontar alternativas e propostas para as novas demandas do futuro.

 

Referências:

Imagem de cabeçalho retirada do site https://www.tempoememoria.com.br/atuacao. Acesso em 10 jul. 2024.

Autora:

 

Flávia Borges Pereira

Flávia Borges Pereira

Sócio-diretora da Tempo&Memória

Flávia Borges Pereira, historiadora, mestre em História Econômica pela FFLCH – USP, é Sócia-diretora da Tempo&Memória e Membro do Conselho Administrativo da ABME – Associação Brasileira de Memória Empresarial.

 

Artigo editado por: Simone Silva Fernandes

Share This