O presente artigo tem como objetivo apontar alguns aspectos da gestão documental no âmbito da Saúde Pública que elegemos aqui como de nosso ponto focal. A abordagem dos documentos e informações e seus resultados tanto produzem efeitos administrativos mais pragmáticos, que surgem a curto e médio prazo, quanto uma grande herança e chave para a sociedade revisitar, apropriar-se de seu passado e produzir novos significados constituintes de sua memória coletiva e histórica.
Discorreremos sobre esses dois aspectos tendo como referência especificamente o trabalho de instalação e consolidação da gestão documental que vem sendo realizado, desde 2013, na Secretaria de Estado de Saúde do Estado de São Paulo pela Comissão de Avaliação de Documentos e Acesso – CADA. Três pontos nos moveram nesse trabalho:
1. A liberação imediata de espaços físicos ocupados por documentos cujos prazos de guarda já estavam prescritos, destinando-os para atendimento de demandas administrativas da própria unidade e dos usuários do sistema de saúde;
2. Conscientização por parte dos servidores de que as atividades que realizam devem ser sempre registradas nos documentos, por meio dos quais os processos de trabalho são formalizados e seus valores administrativos e de prova jurídica são garantidos;
3. A introjeção da gestão documental na rotina laboral da unidade para padronizar a produção e tramitação dos documentos.
Esse é um trabalho em andamento, cujo aprendizado é diário e no qual estamos quebrando alguns paradigmas consolidados na administração pública para alcançar nossos objetivos. Além disso, o campo da saúde pública é muito diverso abrangendo várias áreas de atuação (assistências ambulatorial, hospitalar e farmacêutica, ensino, vigilância em saúde, produção de insumos, dentre outras) as quais proporcionam descobertas de novos conteúdos e de uma gama complexa de documentos; não somente isso, reúnem profissionais técnicos altamente capacitados que exigem acuidade para com seus arquivos.
Através do diálogo com servidores administrativos, técnicos, médicos e cientistas, os benefícios desse trabalho mais fáceis de serem percebidos pelos colaboradores envolvidos são aqueles referentes à reocupação dos espaços físicos liberados pela aplicação da gestão documental, incluindo a organização e a eliminação de documentos prescritos e da massa documental acumulada. A reconquista de espaços dentro de uma edificação promove desde a melhoria das condições ambientais de trabalho até a resolutividade de demandas administrativo-assistenciais da Saúde, proporcionada pela localização de uma informação registrada em documento de arquivo de forma mais célere.
No entanto, esperamos uma mudança mais profunda que potencializa qualitativamente os processos administrativos das instituições de Saúde: o reconhecimento e apropriação do instrumento de gestão documental por parte dos agentes públicos como uma janela para o entendimento do que são as atribuições gerais do Estado relacionadas à Saúde Pública, como elas são cumpridas cotidianamente nas suas unidades e de como as normas dessa atividade são constituídas histórica e socialmente pela burocracia. Achamos que as políticas arquivísticas na área da Saúde, se assim pensadas pelos servidores, podem ser dinamizadoras de impactos estruturais na organização e na cultura de trabalho institucional.
Por outro lado, notamos que ao romper a compreensão do tema baseada em automatismos e na apropriação acrítica, aqueles que estão envolvidos na gestão documental passam a percebê-la como produto da ação do Estado que funciona de forma planejada e organicamente em parceria com a unidade (e não em oposição). O fato de sensibilizarmos os servidores sobre suas atividades, seu registro documental e sua realidade laboral cotidiana, tem feito surgir propostas para melhorar o fluxo de trabalho, realizar modificações e atualizações nos sistemas, claro que pautadas na legislação vigente para garantir segurança jurídica.
Atualmente o trabalho de gestão documental na Secretaria de Estado da Saúde foi incorporado por dois movimentos contemporâneos mais amplos, como os que demandam transparência do Poder Público em relação à custódia e ao uso dos dados e informações produzidas/recebidas dos usuários e como os que demandam ingresso definitivo do setor público no mundo digital.
O primeiro se iniciou naqueles países com democracias formais que instituíram normas constitucionais e infraconstitucionais que tornaram possível o controle social sobre o Estado, daí a instrumentalização jurídico-administrativa do recurso da transparência das instituições, principalmente públicas. Aqui, no Brasil, foi criada uma vasta legislação que trata do assunto, desde Constituição Federal de 1988, passando pela Lei de Acesso à Informação – LAI, nº 12.527/2011, até a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, nº 13.709/2018 que passou a vigorar em 2020. A área da Saúde produz e mantém sob a sua guarda documentos com informações sensíveis de pessoas que passam pela assistência e que são protegidas por tais legislações. Nesse contexto, o grande desafio é buscar equilíbrio entre proteger satisfatoriamente os dados pessoais e sensíveis dos cidadãos que usam o serviço público de assistência a Saúde e liberar o acesso a terceiros para exercer direitos ou fins fiscalizatórios em relação ao aparato institucional. Manter-se atualizado sobre legislação e a realidade desse tipo de serviço é uma ação contínua para atendermos e orientarmos adequadamente os servidores públicos.
Quanto ao segundo movimento, a implantação de sistemas de automação de controle do trâmite e de produção de documentos eletrônicos – que vêm substituindo os documentos físicos cada vez mais no âmbito da área da Saúde -, possibilitou para os responsáveis pela política de governança arquivística a oportunidade de incorporar normas e instrumentos de gestão documental a esses sistemas à medida que eram desenvolvidos. A expansão do uso das tecnologias da informação levou a que os funcionários utilizassem rotineiramente tais sistemas e praticassem conjuntamente os procedimentos arquivísticos de produção, tramitação e protocolo dos documentos, abrandando assim possíveis resistências em perpetrar mudanças na rotina dos servidores incumbidos pela documentação produzida e acumulada.
Nos últimos 30 anos, com a consolidação de diversos serviços do Estado prestados aos cidadãos, e saúde é um deles, a burocracia e suas atividades cresceram para atender tais demandas com eficácia e são permeadas pelo advento das tecnologias de informação e comunicação. Como resultado, a produção/recepção de informações pelo Estado agigantou-se. Diante desse novo panorama, questões que sempre existiram quando os arquivos eram majoritariamente em suporte papel, tomam nova complexidade diante do suporte digital: qual informação pode ser eliminada? O que deve ser guardado permanentemente? O que deve ser guardado temporariamente? Por quanto tempo?
Para alguns profissionais da Tecnologia da Informação a quantidade superabundante de espaço de armazenamento a custos relativamente baixos pode garantir que qualquer montante de informação seja arquivado e mantido indefinidamente. Já os arquivistas têm tido a preocupação com relação a este cenário em diferentes prazos. De fato, pode ser arquivado e mantido indefinidamente? Como ficaria a busca da informação, principalmente aquela registrada em documentos na fase corrente e/ou intermediária, num sistema superlotado? Quanto isso custaria a longo prazo? Mesmo que os sistemas arquivem um indefinido volume de informações, qual a necessidade de se guardar informações que não são históricas ou probatórias?
Reflexões constantes devem ser feitas a respeito desses aspectos desafiadores tanto para o Estado, quanto para a Sociedade. A forma como nós cuidaremos dos arquivos definirá que tipos de soluções teremos a disposição para gerenciar e preservar informações da área da Saúde, bem como que tipos de chaves nós teremos para acessar nossa memória coletiva no âmbito da Saúde Pública.
Bibliografia:
CUNHA, Francisco José Aragão Pedrosa; MEIRELLES, Rodrigo França. Autenticidade e preservação de Registros Eletrônicos em Saúde: proposta de modelagem da cadeia de custódia das informações orgânicas do Sistema Único de Saúde. RECIIS Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde. Rio de Janeiro, v. 14, n.3, 2020. Disponível em: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/2117. Acesso em 11 de março de 2021.
MEYER, Fernando Aparecido de Oliveira; GONIK, Sandra Sotnik. A implantação da política de arquivos, gestão documental e acesso à informação na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo entre os anos 2013 e 2016: avanços e desafios. Revista do arquivo, São Paulo, n. 3, out./nov. 2016. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquivo/03/artigo_04.php#inicio_artigo. Acesso em 12 de março de 2021.
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