O pesquisador Anderson Gomes Santana comenta o trabalho desenvolvido por uma equipe formada no Templo Guaracy do Brasil (TGB) que tem como finalidade preservar, organizar e comunicar a Tradição Umbandista praticada pelo TGB.
Constituição e expansão
O Templo Guaracy do Brasil (TGB) é um espaço espiritualista de tradição umbandista legalmente constituído em agosto de 1973, no bairro de Santo Amaro na cidade de São Paulo. Há 50 anos conduzido pelo Babalorixá Carlos Buby, o TGB tem como compromisso fundamental a preservação e o desenvolvimento pleno da vida. Para se alcançar esse objetivo, os membros associados se dedicam a estudos relacionados a fenômenos de mediunidade, reencarnação, forças da natureza, elementos naturais, metafísica etc. (PELLEGRINI, 2020).
Factualmente a Umbanda, no seu processo de florescimento, adquiriu variações ritualísticas e os Templos fundamentaram suas singularidades a partir de formações socioculturais de seus dirigentes. Com a iniciação de seu Babalorixá, ritualistamente o TGB se fundamentou nas tradições dos povos africanos e compreendeu a importância de não se afastar dos processos que transformam a sociedade e, por fim, teve a prudência de distanciar seus rituais de conotações excessivamente místicas e folclóricas (BUBY, 2020; 2023).
Essas condutas trouxeram ao TGB a oportunidade de agregar em sua filosofia os ensinamentos de mestres iluminados (Jesus Cristo, Sidarta Gautama, Maomé), sem integrar aos seus princípios preceitos imutáveis e interpretações contraditórias. Essa estrutura ritualística, litúrgica e filosófica deu condições para que o Templo Guaracy do Brasil expandisse suas raízes para além da cidade de São Paulo e do Brasil. (BUBY, 2020; 2023).
Na hodiernidade o TGB possui 18 Unidades Guaracyanas espalhadas entre o continente americano e europeu: no Brasil (São Paulo, Cotia, São Roque, Cananéia, Campinas, Fortaleza e João Pessoa); na Argentina (Rosário); nos EUA (Washington DC., Santa Cruz, Miami, Nova Iorque e Los Angeles); Canadá (Quebec), Portugal (Lisboa); França (Paris); Suíça (Genebra); Áustria (Graz), sendo que todas elas cumprem rigorosamente as normas legais nos países em que estão constituídas e respondem ao Babalorixá no que concerne aos fundamentos filosóficos e ritualísticos.
Comemoração dos 50 Anos do Templo Guaracy do Brasil
O ano de 2023 marcou o 50° aniversário do TGB e com ele a natural reflexão sobre o seu processo de amadurecimento, como um espaço de Umbanda e suas contribuições teóricas e práticas para a Tradição. Em abril do mesmo ano, visando uma forma de celebrar, refletir e, ao mesmo tempo, resgatar e compartilhar histórias e memórias, em um momento de recolhimento com seus filhos espirituais, o Babalorixá Carlos Buby partilhou o desejo de ser criar um museu e conceber uma exposição. Para desenvolver o projeto, um grupo foi formado por filhos espirituais [1] do TGB.
O resgaste histórico de uma tradição umbadista
O espaço idealizado como “Museu Guaracyano” até este momento não possui uma política museológica e arquivística, contudo, a partir da orientação de um Técnico de Museologia, a equipe que desenvolveu o projeto teve a prudência para que os itens não fossem danificados no processo de produção. O espaço escolhido para acomodar o Museu Guaracyano e a exposição “50 Anos do Templo Guaracy” foi a sede mundial do TGB, a unidade da Mataganza, localizada na cidade de Cotia, SP.
A equipe agrupou em um cômodo documentos, fotografias, indumentárias e objetos e se dedicou a entender os contextos de produção ou utilização, vínculos e possibilidades de diálogos. Diante do resultado, foi criada uma linha curatorial organizada por décadas, em que os itens foram alocados de acordo com o período de criação ou utilização. Também foi pensado um módulo destinado a indumentárias e paramentos.
Durante o processo, foram percebidos dois contextos que se totalizam. Primeiro, aqueles documentos e objetos produzidos e acumulados à medida que a atividade religiosa do Templo foi desenvolvida e; segundo, do Babalorixá, como dirigente e artista [2]. Compreendida a importância de Carlos Buby para o pleno desenvolvimento do Templo, foi orgânica a inclusão da história e documentação dele na linha curatorial e no interesse de se preservar.
Ainda que sem a aplicação de tabelas de temporalidade, indicando o destino da documentação de arquivo (guarda permanente ou eliminação), e planos de classificação, para o ordenamento das séries documentais, os itens identificados se mostraram riquíssimos em informação e, portanto, foram utilizados para compor a narrativa expositiva. São exemplos de documentação encontrada: os periódicos produzidos pelo Templo, em que eram discorridos temas e curiosidades referentes à religião, sobre a movimentação dos associados e eventos sociais ocorridos no Templo.
Clippings de quando Babalorixá possuía uma coluna em um jornal local, em que discorria sobre variados assuntos; entrevistas dadas para meios de comunicação nacionais e internacionais. Essas duas séries, quando mais bem avaliadas e classificadas, poderão compor uma classe de documentos voltada para Comunicação Social do Templo. Outro rico exemplo são as apostilas litúrgicas com pontos sagrados (cânticos utilizados nos rituais) e de aprendizado que serviam de base para o estudo, que poderão compor a classe de documentos voltada para formação e ampliação de membros.
Entre as séries documentais mais extensas estão as fotografias. No que concerne ao Templo, há o registro imagético de rituais com Guias Espirituais e Orixás, de grupos recolhidos para trabalhos espirituais, de grupos do exterior quando o Babalorixá se deslocava para se reunir com eles em suas respectivas Unidades, de eventos sociais. Nelas encontramos também o Babalorixá em seu ambiente familiar e de ente queridos, como artista em concursos e apresentações musicais. Nesse caso específico, a literatura Arquivística especializada em religiosidade pode apontar soluções para definir o limite entre as fotografias pessoais e as fotografias institucionais.
Documentos audiovisuais e fonográficos com registros de Rituais de Feitura [3] de e pontos sagrados. Já outras séries documentais que, por vezes, pelo valor informacional administrativo, contábil e jurídico ficam confinadas e sem a possibilidade de acesso público foram avaliadas de valor cultural e, portanto, incluídas na exposição. A título de exemplo, os livros contábeis do Templo que revelam os primeiros associados e o desenvolvimento de sua primeira Unidade, pois neles eram indicados os nomes dos participantes e os valores aplicados nas atividades e nos espaços do Templo. Ou mesmo as atas de reuniões, em que eram registradas as decisões tomadas pelo Conselho Administrativo, como a criação das Unidades no exterior e alterações de regras e regimentos.
No que se refere à indumentária, o Templo criou um sistema de vestimentas, que de forma visual é possível identificar a função [4] ritualística e grau [5] do associado. O sistema foi modificado mais de uma vez, sendo possível fazer um retrospecto. Objetos e vestimentas utilizados pelo Guias Mentores do Templo, que hoje não são mais utilizados, mas que o TGB os reconhece como Axés Históricos [6], como um banco de Preto Velho, utilizado pelo Pai Jacinto, mentor dessa linha, na década de 1970, e as moedas utilizadas por Iberê, mentor da linha das Crianças.
Na proposta curatorial da exposição também foi idealizado um projeto de captação de memória oral, intitulado “Eu Estava Lá”, com a proposta de registrar e perpetuar em áudio a vivência individual de membros da Comunidade referente aos eventos históricos do Templo. Entre os mobiliários e objetos foram expostos dezenas de qr codes em que o visitante pode ouvir e criar relações com a memória e a vivência relatadas.
O Templo Guaracy do Brasil possui um grupo documental e de objetos que não se findam na proposta expositiva. Uma riqueza documental que relata momentos e experiências coletivas e individuais de sua Comunidade, mas que também colabora para enriquecer a história da Umbanda. A decisão do Babalorixá encoraja e valida a Comunidade se movimentar para resgatar uma história que foi construída por muitos e que deve atingir a todos que são retratados por ela e a todos que a reverencia.
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Imagem da Sala de Exposição “50 anos do Templo Guaracy” (SP, 2024). Cedida por Anderson Gomes Santana.
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Imagem da Sala de Exposição “50 anos do Templo Guaracy” (SP, 2024). Cedida por Anderson Gomes Santana.
O porvir
A transmissão e perenidade da Herança Cultural, litúrgica, ritualística e filosófica de tradições de matrizes africanas são feitas por meio da oralidade, do mais velho para o mais novo e pela observação cotidiana daqueles que vivenciam uma Tradição. O respeito do TGB e do Babalorixá por esses princípios são profundos, contudo, a percepção da importância de se preservar uma Tradição e uma Ancestralidade para além desse mecanismo vem representar a quebra de um paradigma, que de forma reservada está ocorrendo também com a preservação e a difusão de seus arquivos.
Para além de uma exposição, é relevante salvaguardar esses documentos e objetos de maneira a identificá-los e difundi-los na Comunidade e para além dela. Para tanto, é necessário criar regras e parâmetros mínimos para que seja realizado um trabalho apurado e em consonância com normas de conservação, catalogação e difusão. A perpetuidade desses itens é um ato de resistência por aqueles que no passado sofreram intolerância e foram censurados de vivenciar suas Tradições; é um ato de celebração pois, depois de 50 anos de dedicação, esforço e de constância o Templo Guaracy do Brasil possui princípios e uma filosofia sólidos, e é um ato de divulgação de uma experiência, se tornando um modelo para aqueles espaços que possuem uma Tradição e são orgulhosos por vivenciá-la e desejosos de compartilhá-la.
Notas:
[1] Entre os meses de maio e novembro de 2023, Mayra Castro, Flávia Castro, Mariana Carvalho, Rogério Cavalcanti, Roberto Ravena, Solange Costa, Larissa Lima, Suely Scartezini, Bruna de Souza, Carlos Silveira, Susana Paiva e Anderson Gomes se dedicaram na produção da exposição. Colaboraram também Leonardo Barbosa, Antônio Carneiro, Aline Welinsky, Rogério Angeliski, Patrícia Tomisawa, Camila Crivelenti, Roberto Carvalho, Jorge Alencar, Amanda Burghetti e Osvail Davi.
[2] Carlos Buby, é compositor e cantor. Ao longo de sua caminhada artística compôs músicas que foram lançadas por ele e outros artistas.
[3] Iniciação do culto aos orixás.
[4] Que a pessoa exerce a partir de ordenações do Babalorixá ou dos Guias Mentores.
[5] Patente outorgada a pessoa pelo Babalorixá ou dos Guias Mentores.
[6] Objeto ou paramento consagrado que devido a sua importância para Comunidade, transcende o tempo e a sua função.
Referências:
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO (São Paulo). Plano de Classificação e Tabela de Temporalidade de Documentos da Administração Pública do Estado de São Paulo: Atividades-Meio. 2. ed. rev. São Paulo: 2005, 2019. 264 p. Disponível em: https://www.arquivoestado.sp.gov.br/web/gestao/sistema/plano_tabela. Acesso em: 30 out. 2023.
BUBY, Carlos. Entrevista concedida a Anderson Gomes Santana. Co�a, 21 de outubro de 2023.
. Filosofia Guaracyana. Templo Guaracy do Brasil. Disponível em: < htp://temploguaracy.org.br/filosofia-guaracyana/>. Acessado em 30/10/2023
PELLEGRINI, Luís. Apresentação do Templo Guaracy do Brasil. Templo Guaracy do Brasil. Disponível em: < htp://temploguaracy.org.br/>. Acessado em 30/10/2023
Imagem de cabeçalho: Sala da Exposição “50 anos do Templo Guaracy”, São Paulo, 2024. Cedida por Anderson Gomes Santana.
Autor:
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Anderson Gomes Santana
Técnico de acervo e pesquisador
Anderson Gomes Santana é mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e desde 2015 é técnico de acervo e trabalha com preservação, descrição e difusão de acervos históricos.
Artigo editado por: Simone Silva Fernandes