(Archivoz) Como investigador na área de estudos medievais e História de Arte, com um extraordinário curriculum, optou pelo enfoque nas culturas visuais, nomeadamente anglo-saxónicas e ibéricas. Como é o seu trabalho com as fontes arquivísticas a que recorre?
(Miguel Ayres) O meu projecto de doutoramento prendeu-se com um pequeno conjunto de manuscritos compilados entre os séculos X e XII, e com a respectiva cultura literária e visual. Interessou-me especialmente a problemática das representações do oriente nas culturas Anglo-Saxã e latino-europeia da época, e os modos como esse universo geográfico era descrito e representado graficamente por povos que não o conheciam de forma directa. Ao nível de fontes primárias, recorri essencialmente a fundos de manuscritos medievais de grandes bibliotecas, como a Bodleian Library de Oxford e a Biblioteca Britânica, mas servi-me também de outras instituições como a Biblioteca Nacional de França, a Biblioteca Real de Bruxelas e a Biblioteca Abacial de Montecassino, em Itália. Depois de terminado o doutoramento, ainda escrevi alguns artigos relacionados com estes temas, mas tendi a afastar-me deles e a focar-me em assuntos ibéricos e portugueses. Portanto a minha rotina de trabalho e o tipo de fundos que consulto também se alteraram. O principal ponto de contacto entre as minhas actividades actuais e a área temática do meu doutoramento é a cultura visual do românico, particularmente na Península Ibérica e em Portugal, mas o meu interesse neste âmbito prende-se essencialmente com o imaginário escultórico. Pode-se dizer que migrei geograficamente, mas também em termos de matéria e de linguagem, do pergaminho para a pedra e do escriba para o canteiro. Em paralelo, desde o meu regresso a Portugal, também me tenho dedicado muito aos estudos locais — não necessariamente medievais — da região do vale do Lima. Este enfoque prende-se com uma descoberta que fui fazendo acerca daquilo que pode ser o papel do historiador face à sua comunidade, como cultor duma determinada memória e identidade. Em contextos onde este culto da memória é deficitário, é fácil começarmos a senti-lo como especialmente premente, e ele acaba por tornar-se uma missão. Esta área de investigação “regionalista”, chamemos-lhe assim, tem alargado imensamente os meus horizontes, tanto historiográficos como metodológicos.
(Archivoz) Obviamente, deduzimos a partir da questão anterior que conhece arquivos nacionais e internacionais. Quais as diferenças e/ou semelhanças que encontra, especialmente no acesso às fontes que lhe interessam?
(Miguel Ayres) Como referi, o tipo de investigação que fiz fora do país, nomeadamente em Inglaterra, foi fundamentalmente diferente daquele a que me tenho dedicado agora em Portugal, e o tipo de material que me interessava nessa altura é muito diferente daquele que me ocupa hoje. Portanto qualquer comparação entre as duas realidades seria equívoca. O trabalho de arquivo propriamente dito, não sendo nunca inexistente na área de história, foi bastante marginal para o meu projecto de doutoramento, e limitou-se a algumas questões de proveniência. Em Portugal tenho tido muito mais contacto com os arquivos, eminentemente para assuntos ligados à Época Moderna, e nomeadamente para as minhas incursões dentro da história local.
Tem sido um privilégio, além dum grande gosto, poder fazer uso dos fundos da Biblioteca Nacional e da Torre do Tombo. São recursos extraordinários que provavelmente, como é nosso fado, tomamos por garantidos e não valorizamos devidamente. Conheço menos bem os arquivos distritais fora do norte do país, mas frequento assiduamente o de Viana e o de Braga, onde sempre tive a melhor das experiências. No plano municipal, o de Ponte de Lima é um exemplo do que à sua escala se poderia considerar um arquivo de excelência em qualquer parte do mundo, e tem assumido uma proactividade invulgar no que toca ao levantamento, digitalização e disponibilização de acervos particulares. Devemos saber apreciar o que temos, e nesta área é muito o que temos para apreciar.
Isto não é dizer que as condições sejam ideais. Com os técnicos excelentes e bons arquivos que temos, caracterizados de modo geral por um ethos de tremenda dedicação, percebe-se que facilmente poderíamos colher frutos redobrados se houvesse um pouco mais de investimento e de valorização pública deste ramo profissional. A falta de pessoal é notória em muitos casos, e claramente não se deve à inexistência de técnicos qualificados. Ao nível dos arquivos particulares, particularmente de família, tenho vindo a perceber que ainda há um enorme trabalho de mapeamento e valorização a fazer, que terá sempre de passar por uma certa proactividade na construção de laços com os proprietários. Esta circunstância reflete um défice mais genérico nos grandes trabalhos de levantamento e inventariação, que não se cinge à arquivística, mas também se estende aos mundos da arte e do património em geral, onde o cadastramento ou índice é entre nós um registo subdesenvolvido. O tesouro dos arquivos particulares é um património nacional fragilíssimo, fundamental para a nossa memória comum, que transcende largamente a identidade familiar. Muito vai-se perdendo, e apesar da posse privada o valor que reveste devia ser considerado activamente como um bem público carecido de salvaguarda. Neste domínio, julgo que temos de reconhecer que há um atraso do qual precisamos de recuperar urgentemente, sob pena de continuarmos a deixar perder e dispersar muita matéria importante para o trabalho do historiador.
(Archivoz) Em 2020 é estabelecido um protocolo de colaboração, assinado entre o Município de Ponte de Lima e os proprietários do Arquivo da Casa de Sá, representado pelo Doutor Miguel Ayres de Campos-Tovar. Como decorreu o processo deste notável projeto de preservação e difusão de arquivos particulares?
(Miguel Ayres) Neste caso, tratou-se dum protocolo de escala bastante reduzida, de tal modo que chamar-lhe Arquivo da Casa de Sá é um pouco equívoco. Mas efectivamente, seguindo o exemplo de vários outros proprietários de casas históricas da região, cedemos para digitalização e disponibilização online alguns documentos em nossa posse relativos à Quinta das Cruzes, em Moreira do Lima, que vieram complementar um projecto de digitalização doutro arquivo familiar. Esta propriedade assume uma certa importância na história regional por ter albergado uma Escola Agrícola bastante pioneira no final do século XIX. O arquivo histórico da Casa de Sá, esse, está há muito tempo no Arquivo Distrital de Braga, onde aliás tem sido muito valorizado academicamente, e está em grande parte digitalizado. De 2020 para cá, tenho dado continuidade ao protocolo que referiu cedendo para digitalização alguns manuscritos adquiridos em alfarrabistas, normalmente ligados a figuras relevantes da história regional, como o Cardeal Saraiva ou o poeta António Feijó. É pouca coisa, mas para a preservação da memória comum todas as peças contam. Havendo da parte do nosso Arquivo Municipal um trabalho e uma vontade tão exemplares na valorização desta memória local, seria injustificável não tentar colaborar, mesmo na pequena escala do material de que disponho, e foi isso que procurei fazer. Felizmente várias casas com grandes arquivos, verdadeiramente relevantes para a investigação histórica regional e nacional, têm entendido fazer o mesmo.
(Archivoz) Um dos seus trabalhos de investigação foi com um manuscrito da British Library, intitulado “A monstrous appendage British Library MS Harley 2799, f. 243 and the illustrated De portentis”. O que destacaria desta sua experiência?
(Miguel Ayres) Foi um trabalho entre outros, e já lá vai algum tempo. Mas cada projecto de investigação e cada artigo são à sua maneira uma aventura. Este nasceu dum dos temas de enfoque da minha tese de doutoramento, que é o imaginário das mirabilia e dos monstros na Idade Média. A função cultural e intelectual do monstro — na literatura, no imaginário geográfico, nas representações da natureza — é um assunto que sempre me interessou, apesar de já não voltar a ele há alguns anos. Neste caso, para uma participação num congresso da Universidade de Barcelona dedicado, justamente, às mirabilia, debrucei-me sobre alguns desenhos de criaturas monstruosas que se encontram no final duma Bíblia alemã do século XII preservada na Biblioteca Britânica. Tentei demonstrar que estas representações não eram frivolidades, ociosidades ou caprichos inventados ad hoc por um escriba entediado, mas na verdade brotavam duma veneranda tradição enciclopédica com raízes na antiguidade, e eram tidas como objecto legítimo dum determinado tipo de conhecimento sobre o mundo. Tratou-se de procurar dar contexto e razão de ser àquilo que à primeira vista seria uma coisa espúria e sem sentido — que, no fundo, é o que a história cultural sempre pretende fazer. A nossa dificuldade em pensar medievalmente torna este tipo de exercícios reconstrutivos necessários mesmo para saber interpretar convenientemente as mais pequenas coisas.
(Archivoz) Atualmente, para além de outras atividades é associado de pesquisa do projeto VINCULUM. Como tem decorrido esta sua experiência?
(Miguel Ayres) A minha convergência com o VINCULUM dá-se por duas razões. Em primeiro lugar, porque estou integrado no Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova, de que o projecto faz parte. Em segundo lugar, por uma coincidência de interesses, propiciada pelo meu trabalho no âmbito da história local e história da casa senhorial. Inevitavelmente, o universo dos morgadios e dos arquivos de família, que está no cerne da actividade do projecto, também está muito presente nestas minhas áreas de interesse. Julgo que até ao momento a minha principal utilidade para o VINCULUM tem sido a de servir como ponto de contacto com o vale do Lima, que é uma zona do país invulgarmente rica em casas antigas, morgadios históricos e bons arquivos de família. Em julho deste ano, por exemplo, o projecto realizou em Ponte de Lima um encontro que foi extremamente interessante, e que permitiu a investigadores nacionais e estrangeiros conhecer algo da riqueza da casa senhorial numa região onde ela ainda é uma realidade viva e intensamente vivida.
(Archivoz) Tem colaborado como especialista no mercado da arte. De que forma os arquivos colaboram com este mercado? Queremos dizer, se são necessários ou imprescindíveis para o estudo de determinada obra?
(Miguel Ayres) Se trabalhasse com outras épocas dentro do mercado da arte, a minha resposta provavelmente seria diferente. Mas lido quase exclusivamente com arte medieval, e nesse contexto são pouco frequentes os casos em que o conhecimento das peças é iluminado por arquivos da época. Falamos dum tempo muito recuado, e dum tipo de produção artística que raramente se reflecte na documentação escrita disponível. A peritagem passa muito mais pela análise estilística, pelo conhecimento empírico das técnicas e escolas regionais e, nalguns casos, pelo trabalho laboratorial (como acontece com a análise petrográfica da escultura).
O que me é útil com mais frequência são os arquivos de colecções públicas e privadas por onde determinada peça pode ter passado, que evidentemente são acervos documentais muito mais recentes. Esses, sim, revelam-me bastantes vezes essenciais para reconstituir o percurso dum objecto, sobretudo ao longo dos séculos XIX e XX. Essa vida longa da arte, que nalguns casos é extremamente complexa, também é um objecto do meu trabalho. E nalguns casos revela-se mesmo a parte mais inesperada e mais cativante do processo investigativo.
Também é importante notar que o trabalho de peritagem desenvolvido com galerias e leiloeiras muitas vezes tem de ser abreviado, para corresponder ao ritmo acelerado do próprio mercado; já no domínio da gestão de colecções e produção de catálogos para clientes particulares, em que também tenho estado envolvido, costuma haver ocasião para se fazer investigações de maior fôlego, que são sempre as mais gratificantes.
(Archivoz) Certamente, tem projetos em mãos que envolvem temas de arte, fontes arquivísticas, etc…. Pode-nos desvendar um pouco do que está para publicar?
(Miguel Ayres) A principal publicação que tenho no prelo, e que há de sair ainda em 2023, é justamente o catálogo duma grande colecção de escultura medieval. É um volume extenso, com entradas bastante aprofundadas e excelente fotografia, que escrevi em co-autoria com Charles T. Little, curador Emérito do Metropolitan Museum de Nova Iorque. Foi um grande privilégio ter podido colaborar nesta empresa, que começou há uns cinco anos, e para a qual contribuí essencialmente com estudos sobre o românico e sobre a arte ibérica. O catálogo dá a conhecer o acervo de escultura da colecção McCarthy, que é uma das mais importantes colecções de arte medieval em posse particular na actualidade; já foram publicados volumes sobre os seus manuscritos, e avizinha-se agora outro sobre a selecção de vitrais, que é verdadeiramente ímpar.
Numa frente completamente distinta, tenho pronto um livrinho resultante dum curso que ministrei há alguns anos no Mosteiro de Tibães sobre a história e a espiritualidade da arquitectura monástica, particularmente dentro da tradição beneditina. Procuro ter sempre um ou outro artigo científico na calha, e este momento não é excepção, apesar de nem sempre me sobrar tempo quanto precisaria. O tema da casa senhorial minhota continua na linha da frente dos meus interesses; depois de ter publicado o livro À descoberta dos solares da Ribeira Lima: um património entre a continuidade e a reinvenção, está previsto para breve o aparecimento dum pequenino caderno-roteiro, que oferece ao visitante desta região algumas sugestões de casas a conhecer.
Aproveito para referir ainda outro projecto em que tenho estado envolvido, e que tenho acarinhado especialmente: trata-se da criação duma revista, propriamente científica, votada aos estudos regionais limianos. É uma ideia que se tornou realidade graças ao patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, e que julgo servirá bem a cultura regional, constituindo-se como ponto de encontro entre a boa investigação local e a academia. Também aí o universo dos arquivos estará bem presente, dado que se entendeu reservar uma secção expressamente para a publicação de fontes documentais inéditas.
Entrevistado
Miguel Ayres de Campos Tovar
Miguel Ayres de Campos Tovar é licenciado em História da Arte e mestre em Estudos Medievais pela Universidade de Oxford, e doutorado em História da Arte Medieval pelo Courtauld Institute of Art. Seu projeto de pesquisa de doutorado recebeu uma bolsa integral do Consortium of the Humanities and the Arts in South-East England (2015-2019), e sua pesquisa de mestrado foi apoiada por uma bolsa do Arts and Humanities Research Council (2011-2012).
É investigador na área dos Estudos Medievais, com particular enfoque nas culturas visuais anglo-saxónicas e ibéricas pré-1200, na arte românica e nas representações medievais da natureza, tendo também trabalhado como especialista no mercado da arte. É Investigador Integrado do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, e Investigador Associado do ARTIS – Departamento de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Entrevistador
Mª Nieves Sobrino García
Editor de conteúdo. Archivoz Magazine
Chefe de serviço del Archivo de la Venerável Ordem Terceira de S. Francisco do Porto e archivera principal en el Archivo Historico de la Iglesia Lusitana (comunión anglicana de Portugal)
Caro Senhor Aires Campos Tovar
Nesses estudos medievais, conseguiu determinar qual a familia que se tornou dominante na europa e em Portugal?
Sabe qual o sobrenome dessa familia ?
Sabe que a torre do tombo nao tem a informação vital, de onde veio a casa de Bragança e quem a trouxe para Portugal ?
No tempo antigo os nossos sobrenomes atuais eram nomes de casas e nao sobrenomes, que é totalmente diferente.
Na história existem muitas mentiras, o nosso conde henrico veio de Limburg e nao da Bourgogne
O João IV de Bragantiae veio da Alemanha e nao veio de nenhum duque jaime de Bragança, é so invenções na Republica, mas isto requer documentação probatória
João Felgar