Entrevista de Alexandra Vidal com Pedro Pinto, investigador, historiador e paleógrafo da Faculdade de Ciências sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
(Archivoz) A sua vasta carreira como investigador, paleógrafo e historiador é conhecida de quase todos, mas como foi o início? Como eram os arquivos no início do seu percurso?
(Pedro Pinto) Como todos os licenciados do curso de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, logo no primeiro ano fui a arquivos, como a Torre do Tombo ou o Arquivo Histórico Municipal de Lisboa, no âmbito da cadeira de Teoria das Fontes, mas a falta de experiência sobre os fundos ou de paleografia, limitava em muito a utilidade de tais missões. Foi após a conclusão do ramo de formação educacional, em 1997, que concorri a um projecto de publicação da Chancelaria de D. Duarte, sob a égide dos Professores Doutores A. H. de Oliveira Marques e João José Alves Dias, e comecei a aperfeiçoar o meu conhecimento de paleografia. Posso dizer que, praticamente, desde então, quase todos os dias acabo por ler documentação manuscrita dos mais variados séculos, para os mais variados objectivos. Mas, foi depois da conclusão do projecto da Chancelaria de D. Duarte, em 2000, que comecei realmente a trabalhar em arquivos, desta feita no âmbito de outra série documental do Centro de Estudos Históricos, da Universidade Nova de Lisboa, as Cortes Portuguesas. A documentação para o reinado de D. Manuel I já estava seleccionada e parcialmente transcrita, mas era necessário rever tudo, organizar a informação e conferir pontualmente dúvidas em arquivos fora de Lisboa. Fiz as minhas primeiras visitas fora da capital, em Évora, no Arquivo Distrital, e no Porto, na Casa do Infante, acompanhado do Professor João Alves Dias. À medida que fui ganhando experiência nos principais fundos documentais da Torre do Tombo, e nas colecções existentes na Biblioteca Nacional, comecei também a trabalhar em pequenos projectos de investigação e transcrição documental, a maioria deles relacionados com os contactos dos Portugueses com a África e a Ásia. Pelo prazer da descoberta, comecei a ver os fundos medievais e modernos dos arquivos e bibliotecas de Lisboa de fio a pavio. Depois, em 2004, ao finalizar a edição das Cortes de D. Duarte de 1436 e 1438, propus ao meu coordenador revisitar a recolha da documentação para o projecto das Cortes Portuguesas. Aquando das primeiras edições das Cortes Portuguesas, os arquivos e bibliotecas utilizados foram essencialmente a Torre do Tombo, Biblioteca Nacional, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Academia das Ciências de Lisboa, Arquivos Municipais de Lisboa, Coimbra e Évora, além do Archivo General de Simancas (por causa das procurações dos concelhos aquando das Cortes de D. Fernando I de 1383), com base nas recolhas feitas desde o século XVIII até meados do século XX para esta temática. A concentração documental incidia nesses arquivos e bibliotecas, quer fossem documentos originais ou cópias de originais já desaparecidos. Em 2004, tinha sido possível alargar o escopo arquivístico ao Arquivo da Casa de Bragança, em Vila Viçosa, ao Arquivo Distrital de Braga, ao Arquivo Distrital de Viseu e ao Arquivo Municipal de Guimarães. Assim, nos anos seguintes, fiz visitas a largas dezenas de arquivos municipais e distritais, além de arquivos institucionais, religiosos, particulares e de Misericórdias. Utilizando o então recentemente publicado Recenseamento dos Arquivos Municipais e Misericórdias, que, distrito a distrito, elencava os fundos e colecções existentes em cada município e Misericórdia, foi possível identificar os locais a visitar prioritariamente, tendo em vista a identificação de documentação de âmbito parlamentar, desde 1325 a 1697, data das últimas Cortes reunidas por D. Pedro II. Idealmente, tentei obter boas reproduções ou fotografar as espécies documentais, para evitar futuras deslocações. Esta investigação ocorreu no seguimento da criação de novos arquivos municipais por todo o País, no âmbito do PARAM – Programa de Apoio à Rede de Arquivos Municipais, que começara em 1998. Graças a essas visitas, as edições posteriores das Cortes Portuguesas revelam uma maior diversidade dos arquivos utilizados, produzindo um espelho um pouco mais próximo da realidade documental produzida no âmbito dessas sessões parlamentares (no que respeita às edições publicadas para os anos de 1438-1447), sabendo-se perfeitamente que muita documentação original produzida à época desapareceu na voragem dos tempos. Está em curso a publicação de suplementos às Cortes de D. Afonso IV, de D. Pedro I, de D. Fernando I e de D. Manuel I, e novos volumes para D. Duarte e D. Afonso V. Naturalmente, na primeira década do novo século, muitos municípios não tinham ainda um arquivo devidamente equipado, com técnicos de arquivo, com guias de fundos ou inventários minimamente detalhados. Por vezes, chegado ao município, mesmo avisando antecipadamente, tinha de apresentar o projecto perante um vereador ou chefe de gabinete para explicar o motivo da visita. Consultei documentação em armazéns, escolas, sótãos exíguos, escadas, com livros e documentos avulsos literalmente em montes ou dentro de caixas, sendo um desafio para a celeridade das sempre curtas deslocações, pois as estadas eram muito custosas para o orçamento da unidade de investigação. Tentei reunir mais do que uma visita a um arquivo numa viagem, em particular no Alentejo, onde há mais concentração de arquivos a uma razoável distância de Lisboa. Cheguei a utilizar dias de férias passadas em zonas remotas do País para uma pequena escapadela a um arquivo, como em Trancoso, Manteigas, Miranda do Douro, Valença do Minho, entre outros… Sempre notei que a esmagadora maioria de trabalhadores municipais tem muita vontade de ajudar os investigadores que procuram informação, mas estão limitados pela falta de recursos de vária ordem. Por vezes, juntávamo-nos, investigador e trabalhador municipal, num estado de lamentação profunda pelo estado a que as coisas tinham chegado. Sempre que possível, em função do tempo e espaço, oferecia os meus serviços paleográficos para identificar documentação por tratar, acumulada por décadas sem que ninguém lhe tocasse. Fazia sumários, datava documentos e mantinha a mesma ordem, e posteriormente, os serviços podiam optar por integrar alguns desses itens nas séries já identificadas. Não foi incomum encontrar livros de vereações, de registo, de receitas e despesas, notariais e paroquiais, ou fragmentos deles, nessas caixas por tratar, que, depois passaram a integrar as respectivas séries, ou foram transferidos, por minha sugestão, para o respectivo arquivo distrital. Claro que também há trabalhadores em arquivos sem vocação para atendimento ao público em alguns municípios, mas creio que é uma realidade que afecta muitos outros serviços e não seja exclusiva dos arquivos. Por vezes, temos de ser mais insistentes. Ainda esta semana, recebi as imagens digitalizadas que solicitei de um município na Beira Interior há quase dez anos, após muitos emails, telefonemas e exposições, quase que chegando a ponderar escrever à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos quando finalmente elas chegaram. O que vale é que não tinha pressa para escrever o artigo em que utilizaria tais imagens… Há, também, pedidos que nunca são respondidos. Apesar do PARAM, há ainda muitos municípios que têm a documentação de arquivo junto da Biblioteca Municipal, e obter informações ou localizar documentos que sei que existem ou existiam torna-se um processo moroso e complicado, pois não é a função essencial de um bibliotecário saber onde está um tombo de bens do concelho do século XVIII, ou onde está um livro de vereações de 1619… Outro problema é que livros e documentos que foram identificados no âmbito da iniciativa já mencionada do Recenseamento dos Arquivos Municipais e Misericórdias, estão presentemente desaparecidos. Ainda são alguns e não irei referir os nomes dos municípios, mas causa muita estranheza o seu desparecimento. Alguns casos derivam do empréstimo de documentação a eruditos e curiosos locais. Com o tempo, os documentos extraviam-se, os eruditos morrem e os herdeiros não sabem o que fazer com aquilo. Noutros casos, creio que a documentação poderá ter sido simplesmente eliminada por ter sido julgada irrelevante. Falo de documentação do século XVI, inclusivamente. Há municípios que são sede de distrito e não possuem arquivo instituído, que têm a documentação espalhada por vários espaços sem a dignidade e condições necessárias para assegurar o seu tratamento, quanto mais a sua preservação. Outros municípios, sede de distrito, delegam a responsabilidade de cuidar da sua documentação nos arquivos distritais sediados no seu território. Para o leitor, desde que a documentação possa ser consultada, não há diferença. Mas quem estiver a trabalhar em períodos mais próximos da contemporaneidade, terá de se deslocar a dois arquivos, ao distrital e ao municipal (se existir). Há também exemplos distintos, que merecem uma referência especial. Em tempos, telefonei para juntas de freguesia de territórios que tinham sido concelhos no Antigo Regime, posteriormente extintos. A ideia era perceber se ainda tinham documentação antiga. Em Melres, o secretário foi inexcedível em procurar ajudar. Não tinha documentação na junta, mas sabia de um livro de juiz dos órfãos setecentista na posse de uma descendente de tal oficial. O livro foi identificado e, por minha sugestão, seguiu para o Arquivo Distrital do Porto. Mais recentemente, no Alto Alentejo, um presidente de junta de freguesia, muito novo por sinal, mas muito atento à importância do património documental para o reforço da identidade da comunidade, resgatou uma caixa de documentos oitocentistas que estava à mercê dos elementos.
(Archivoz) Tem transcrito inúmeros documentos com os mais variados temas. Considera que a publicação de fontes históricas continua a ser necessária para as novas gerações que muitas vezes não têm formação adequada em paleografia? Que investimentos têm sido feitos nesta matéria?
(Pedro Pinto) A publicação de fontes nunca deixará de ser pertinente. Mas, convém dar um rumo às publicações, para não haver, num país tão pequeno, recursos financeiros e humanos concentrados nos mesmos temas e épocas. Embora seja interessante a publicação de documentos avulsos, faz falta a publicação de séries documentais, sobretudo para a Idade Média e Moderna. Mas não creio que presentemente haja possibilidades de financiamento de tais projectos por entidades oficiais, há um certo desinteresse e não tem, aparentemente, tanto valor bibliometricamente.
(Archivoz) “Portugal in the sea of Oman” foi um dos seus trabalhos mais recentes em que integrou uma equipa de investigadores internacionais. Ainda há muito a explorar,no plano das fontes históricas, no que concerne às nossas relações com o Magrebe e o Médio Oriente?
(Pedro Pinto) Para o Norte de África, a colecção incontornável é Les sources inédites de l’histoire du Maroc : Archives et Bibliothèques du Portugal, publicadas por Pierre de Cenival e Robert Ricard, de 1934 a 1953, em 5 volumes. Mais recentemente, o CHAM – Centro de Humanidades disponibilizou online não só estes volumes digitalizados mas também nova documentação transcrita (https://cham.fcsh.unl.pt/portugalemarrocos/investigacao.html). Há ainda muita documentação para o Norte de África na Torre do Tombo e Biblioteca Nacional, mas precisa de ser transcrita e editada convenientemente, para poder ser depois usada. Para o Médio Oriente, pensando na confluência do Império Turco, dos Persas, e da península arábica, a documentação produzida para os séculos XVI-XVIII é imensa, são dezenas de milhares de documentos espalhados por diversos arquivos e, até mesmo, países, dado que muitas colecções e arquivos portugueses se dispersaram pelo estrangeiro por roubos, extravios, etc. A vantagem do projecto Portugal in the Sea of Oman foi a de apresentar os textos originais lado a lado com traduções modernas em inglês e em árabe, abrindo as portas a uma difusão muito mais rápida, assim o esperamos, junto da historiografia anglo-saxónica e árabe, por forma a que os dados recolhidos possam ser efectivamente usados por quem mais se interessa por esta área regional do mundo.
(Archivoz) Cada vez mais temos arquivos portugueses online disponíveis na web. Como tem sido a sua experiência na busca e recuperação da informação?
(Pedro Pinto) No geral, é positiva. Há pequenos problemas que são difíceis de resolver. Alguns municípios optam por programas que são pouco operacionais. Por exemplo, quando se descarrega um ficheiro digital, não há metadados associados ao nome do ficheiro e é fácil perder a informação de onde se realmente descarregou o ficheiro e a que cota diz respeito. Há arquivos com cotas muito confusas, constantemente em mutação e sem relação alguma com as séries originais correspondentes, tornando muito difícil identificar documentos desses arquivos que foram publicados no século XX, pois as cotas não têm nenhuma relação entre si. Além disso, não é incomum o próprio arquivo não saber da equivalência entre as cotas usadas há poucas décadas pelo próprio arquivo e as actuais. Há arquivos com grande riqueza documental, mas isso é obscurecido pelas bases de dados escolhidas, pois impedem compreender cabalmente o âmbito e conteúdo dos fundos existentes, obrigando a deslocações perfeitamente desnecessárias. Recordo-me de um arquivo que tinha uma base de dados, mas apenas consultável presencialmente. Telefonei para saber se me poderiam fazer a pesquisa de alguns termos concretos e disseram-me que não, que a pesquisa tinha de ser feita pelo leitor, e que não prestavam informações à distância. É uma atitude de guardião do tesouro que não olha para o tesouro nem o mostra a ninguém. Felizmente, passados alguns anos, a situação mudou e a base de dados ficou online, ainda que com muitas deficiências na sua construção e disponibilização dos dados. Há, frequentemente, pouca cultura no recurso a agentes que usam o arquivo, para além dos arquivistas, é claro, para realizarem testes aos motores de pesquisa e às funcionalidades previstas numa fase de criação e desenvolvimento das bases de dados, com resultados que tornam a informação menos recuperável e menos útil. Além disso, sobretudo nos arquivos que possuem documentação medieval e moderna, nota-se uma grande falta de uniformidade de critérios nas formas de sumariar os documentos, e até mesmo na grafia usada. Alguns inserem a grafia conforme o documento original, tornando labiríntica e ciclópica a possibilidade de um utilizador moderno encontrar Cintra, Cea, Rodriguez, Guimar, Crasto, etc., quando procura realmente Sintra, Seia, Rodrigues, Guiomar ou Castro. Acumulam-se assim registos-fantasma, apenas se chegando até eles por acaso ou imaginando as múltiplas formas de grafia usada para um termo concreto ao longo dos tempos. O catálogo online da Biblioteca Nacional tem uma funcionalidade que permite ao utilizador propor a correcção de um registo individual que ache que tem gralha ou erro. É uma solução a implementar nos arquivos, aproveitando a colaboração que utilizadores podem dar para melhorar as descrições.
(Archivoz) Ainda se justifica a publicação de catálogos dos nossos arquivos, neste momento de viragem para o digital?
(Pedro Pinto) Sim, é crucial. A forma como interpretamos a informação escrita e organizada em forma de catálogo ou inventário é diferente da forma como olhamos para o “buraco negro” da caixa de pesquisa numa base de dados. A diversidade de abordagens na descrição dos termos, palavras, topónimos, cronologias pode ser suprida por uma leitura atenta das existências num arquivo a partir de um catálogo, pois um utilizador experiente consegue “ler” e “subentender” a existência dos documentos que potencialmente procura ao ler e cruzar os olhos sobre tudo o que uma instituição possui.
(Archivoz) Ainda haverá espaço no futuro para o arquivista/paleógrafo ou investigador/paleógrafo?
(Pedro Pinto) Para o segundo, sem dúvida que sim, não importa quantas máquinas se ensinem a ler documentos, ainda não se vislumbra no horizonte uma máquina capaz de passar horas na sala de leitura de um arquivo a ver maços de papéis sem fim e a processar o seu conteúdo. O arquivista-paleógrafo é, creio, uma acumulação de valências cada vez mais rara, dado que a paleografia não é necessariamente uma prioridade para a formação técnica do arquivista.
Imagem cedida por Pedro Pinto
Entrevistado
Pedro Pinto
Investigador da Universidade de Lisboa, Faculdade Nova de Ciências Sociais e Humanas
Licenciado em História (1995) pela NOVA FCSH. As suas áreas de interesse são a paleografia, história dos arquivos, chancelarias régias e cortes portuguesas.
Ao longo do percurso académico trabalhou em vários projetos de investigação, visando a publicação de fontes primárias portuguesas inéditas, como a Chancelaria de D. João I e de D. Duarte, as Cortes de D. Duarte, D. Afonso V e D. Manuel I. Além disso, trabalhou também com instituições estrangeiras visando a obtenção de informação documental sobre os contactos entre Portugal e os actuais territórios de Oman, Emirados Árabes Unidos, Catar e Singapura. De uma dessas parcerias, resultou a edição da coleção Portugal in the Sea of Oman: Religion and Politics, com 22 volumes publicados de 2015 a 2021 em facsímile e com transcrição dos documentos originais portugueses, acompanhada de tradução bilíngue para inglês e árabe.
É membro do Projeto Philobiblon – BITAGAP (Biblografia de Textos Antigos Galegos e Portugueses), que visa recensear todos os testemunhos manuscritos conhecidos ou perdidos de obras literárias, históricas, legais, religiosas, científicas, medicinais, etc, redigidas em galego ou português, até 1500. Além disso, é consultor em diversos projectos de natureza histórica, como o Vinculum: Entailing Perpetuity: Family, Power, Identity. The Social Agency of a Corporate Bodyu (Southern Europe, 14th-17th Centuries) ou o Western Sephardic Diaspora Roadmap (WSD Roadmap).
Actualmente, é estagiário de investigação no Instituto de Estudos Medievais no âmbito de um projecto que visa publicar edições suplementares das Cortes de D. Afonso IV, D. Pedro I, D. Fernando I e D. Manuel I, bem como edições novas das Cortes de D. Duarte e D. Afonso V.
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Entrevistadora
Alexandra María Silva Vidal
Editor de conteúdo, Archivoz Magazine
Archivera en el Archivo Historico de la Iglesia Lusitana (comunión anglicana de Portugal); Miembro de proyetos archivísticos en el Archivo Distrital de Braga
Gostei muito de ler esta entrevista de Alexandre Vida a Pedro Pinto. Com os dois percorri os seus inúmeros contributos deste historiador em publicações como as “Chancelarias Régias”, “As Cortes Portuguesas”, bem como a transcrição de fontes para a História do Norte de África e da Expansão Portuguesa”. Prescrutámos o extraordinário percurso do historiador, investigador e paleógrafo que conhece como ninguém os arquivos portugueses.