(Archivoz) A sua formação é de gestor público, formação na área do Direito, e que muitas vezes se relaciona com a arquivística. Conte um pouco para nós como foi o seu primeiro contato com a arquivologia e como você está encarando estar à frente do maior arquivo público estadual do Brasil

(Fernando Padula) Estou há 20 anos na administração pública. Cursei Direito, depois Gestão Pública em nível de Pós-Graduação e Especialização em Governança e Governabilidade e agora estou fazendo Mestrado sobre Cidades Inteligentes. Nessa trajetória tive dois contatos com o Arquivo Público do Estado – APESP, antes de minha vinda para cá. O primeiro quando fui chefe de gabinete na Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (2003-2007) instituição que abrigava um grande acervo e que tinha uma massa documental acumulada que não sabíamos como tratar. Na época resolvemos organizar um mutirão para fazer a avaliação e, para isso, solicitamos orientação ao  Arquivo Público. Boa parte daquele acervo era do antigo CETREN (Central de Triagem e Encaminhamento), acumulado pela Secretaria, que foi recolhido para o Arquivo e hoje já está descrito no Guia do Acervo APESP. Foi feito todo o trabalho de higienização, desmetalização, identificação e avaliação dos documentos que deveriam ser eliminados, por serem de guarda temporária, e daqueles cujo destino seria a guarda permanente.

Ao todo foram organizadas e recolhidas ao Arquivo Público 3.913 caixas de prontuários da CETREN, documentos produzidos entre 1970 e 1986. Aquele esforço mobilizou um grupo grande de servidores e direcionou nossa atenção aos equipamentos de proteção individual (EPIs), necessários ao trabalho. Lembro que foi a primeira vez que a Secretaria precisou adquirir luvas e máscaras para  lidar com os documentos. Houve até dificuldade no processo de compra desses itens, mais comuns na área de saúde, mas que eram EPIs essenciais para o trabalho com os arquivos. Depois que o acervo da CETREN foi recolhido fui até o Arquivo Público para ver o acervo e conhecer melhor a instituição.

O segundo contato ocorreu quando eu era chefe de gabinete na Secretaria de Educação, ocasião em que o Arquivo desenvolveu o Programa de Gestão Documental Itinerante – PGDI e nós, enquanto órgão setorial, recebemos a equipe do APESP e apoiamos muito o trabalho de orientação para a identificação de acervos. Foi um processo exercido com afinco e comprometimento pelas duas instituições, seus efeitos repercutiram no Órgão Central, nas Diretorias de Ensino e chegou até nas Escolas. Também naquela época eu já ouvia falar do Sistema Informatizado Unificado de Gestão Arquivística de Documentos e Informações – SPdoc e queria que fosse implantado na Secretaria de Educação que utilizava um sistema mais antigo.  A partir daí compreendi que para implantar o SPdoc era preciso ter a Tabela de Temporalidade de Documentos, então, diante desse pré-requisito, iniciamos o processo de elaboração desse instrumento que, hoje, eu sei que é fundamental para a gestão documental. Esses foram meus contatos iniciais.

Antes de vir para o Arquivo recebi alguns convites de outras instituições, inclusive para continuar exercendo a função de chefia de gabinete, mas percebi que trabalhar no APESP seria adentrar numa área nova, da qual eu tinha gostado pelos contatos iniciais e pelas visitas guiadas que fiz no local. Já tinha me encantado pela instituição e vi que seria um novo desafio. Assim eu vim parar aqui.

Mas teve contato com outros Arquivos anteriormente?

Somente esses contatos pontuais citados, mas passei a ter noção sobre a importância da área arquivística e das instituições de arquivos quando vim trabalhar no APESP. Venho aprendendo e ainda tenho muito a conhecer. Além de conversar com os profissionais das áreas dentro do APESP, também quis conhecer as demais instituições arquivísticas no estado de São Paulo e fui visitar o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), o Centro de Documentação e Memória – CEDEM/UNESP, o Arquivo Histórico Municipal, o Arquivo Edgar Leuenroth (Unicamp), a Fundação Bunge, o Centro de Memória do SESC e outras tantas instituições que me ajudaram a aprofundar sobre as práticas da área, ao mesmo tempo em que conhecia melhor o Arquivo Público do Estado.

Como você está encarando estar à frente do maior arquivo público estadual do Brasil?

Eu me apaixonei pela área, acho que é um privilégio estar aqui. Tenho me dedicado de corpo e alma a fazer tudo o que eu posso pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. Eu tinha anos de experiência e conhecimento na administração pública e estou transferindo esse conhecimento para ações no APESP. Mas é preciso registrar que eu cheguei em um bom momento no Arquivo, já havia uma nova sede, acompanhada de um concurso público específico para a instituição, em uma nova estrutura organizacional (o Arquivo fazia parte da estrutura da Secretaria de Cultura e hoje está na Secretaria de Governo) com mais recursos e infraestrutura. Enfim, uma série de ganhos dos quais eu não tive participação e que já estavam implantados quando cheguei. O Arquivo tem um corpo de servidores estável e bem formado e a instituição é referência em todo o Brasil. Portanto, eu me sinto um privilegiado e um apaixonado pelo Arquivo Público. Potencializei o que já havia de qualidades, tentei imprimir um estilo de gestão à instituição e inserir o Arquivo no dia a dia dos órgãos da Administração estadual. Acho que avançamos nesse sentido.

Desde que você assumiu o Arquivo Público do Estado de SP, a instituição se direcionou mais para o digital. Dentro das limitações legais e de gestão pública, qual a ideia de incorporar o digital para o mundo dos arquivos?

Demos andamento ao que já existia nesta área. Houve um esforço do Arquivo na parte da gestão documental, em produção de Tabelas de Temporalidade de Documentos das Atividades – Fim, em adesão ao SPdoc, e também houve avanço em relação à construção do Guia do Acervo, principalmente em finalizar as descrições dos acervos das Secretarias Estaduais. Em relação aos Documentos Digitais começou a haver demandas dos órgãos e o Arquivo se colocou na discussão. É importante entrar na era digital, mas respeitando os requisitos arquivísticos.

O suporte papel pode acabar, mas os documentos nunca acabarão. Diferentemente de outros estados que implantaram sistemas digitais sem consultar as entidades arquivísticas, em São Paulo o Arquivo Público, enquanto órgão normativo e autoridade na área, participou decisivamente desde a escolha do sistema, no caso um software livre atrelado às regras de gestão documental, até normas e procedimentos, ações de capacitação, modelagem de documentos digitais, mapeamento da constituição do fluxo documental, etc, ações que permitirão que os documentos sejam classificados desde sua criação. Estamos produzindo documentos nato-digitais, aproveitando toda a expertise da área de arquivos a favor desse processo de transformação na administração pública.

Um dos diferenciais do Arquivo Público do Estado é a sua posição. Tanto estratégica, quanto de custeio. Conte um pouco sobre estas conquistas.

É importante que o Arquivo esteja na Secretaria de Governo pois é uma secretaria que tem atuação transversal,  que articula os entes setoriais e permite a implementação de ações nos diversos outros órgãos e entidades. Mas este posicionamento não é estático, por isso, cabe aos gestores e ao corpo técnico da instituição mostrarem a importância para o governo de se ter um arquivo em um órgão estratégico. Por exemplo, o Arquivo é uma unidade central, um órgão normativo, que define regras para os documentos que estão nascendo hoje e cumprindo sua função primária. É quase impossível exercer o papel de unidade central em uma secretaria que não tenha essa função transversal na administração. Seria muito mais complexo cumprir essa tarefa em outra secretaria. Cabe a nós mostrarmos para à administração que nossas atividades são essenciais para o funcionamento do Estado.

Outro diferencial é que, tendo um orçamento próprio, o Arquivo pode planejar suas ações, diferentemente de ser um órgão que disputa verba com outros órgãos e que não sabe quanto terá de recursos anualmente. Além disso, adotamos outras estratégias de manutenção. Um ganho nesse sentido foi a criação do Fundo do Arquivo (Fearq), que permite que as receitas que o Arquivo gera, com a emissão de certidões, por exemplo, componham este fundo, o que não ocorria anteriormente. Além disso, por meio do Fearq, conseguimos reverter a renda da venda de cursos, publicações e outros materiais gerados no Arquivo, para o próprio Arquivo, possibilitando a utilização desta verba para a aquisição de material permanente, por exemplo.

Como convencer um político que tem uma visão ampla acerca de sua função no aparato estatal, de que é importante dar atenção aos arquivos públicos?

Eu não restringiria a políticos. Guardadas as devidas proporções, enxergo na minha função de coordenador ações de duas naturezas: aquelas relacionadas às funções de chefe de governo, ou seja, administrar e manter a instituição funcionando, e as relacionadas às funções de chefe de estado, direcionadas para sensibilizar a administração pública sobre a importância do Arquivo, buscando o fortalecimento institucional e uma abertura e apoio para nossa área e atuação.

É preciso conseguir espaço na agenda de gestores e dirigentes de instituições públicas para mostrarmos a importância do cuidado com seus arquivos. Traduzir o que a organização de documentos significa em termos de respostas mais rápidas ao público, mostrar, por exemplo, que não há necessidade de se gastar recursos públicos com aluguel de espaço para armazenamento de documentos que já cumpriram seus prazos de guarda, como ocorre frequentemente no caso de grandes volumes de relações de remessa cujos prazos de guarda já se esgotaram e que são guardadas desnecessariamente. E essa eficiência é possível com a gestão documental.

É preciso angariar espaço na agenda dos secretários de modo que eles, para além das preocupações com as atividades de suas respectivas secretarias, ainda possam nos ouvir e entender que a gestão de arquivos é importante para o pleno funcionamento do órgão e a eficiente prestação de serviço ao cidadão. É, portanto, um trabalho de conscientização. Tudo isso faz parte de minha tarefa como gestor do Arquivo Público. Temos que bater de porta em porta e mostrar que o Arquivo existe e que a gestão documental é solução e não problema, e que temos um espaço ideal para armazenamento de acervo permanente, com uma equipe qualificada para tratamento, preservação e acesso a esse acervo.

O desafio é romper, primeiro, o estereótipo de que arquivo é um galpão empoeirado. Segundo, é mostrar que todas as áreas precisam fazer sua parte na gestão de documentos e cabe a nós mostrarmos os benefícios que a boa gestão documental e a área de arquivos podem gerar para o dia a dia de todas as instituições.

Fale um pouco dos desafios para os próximos anos para o arquivo que você dirige.

Aponto hoje dois principais desafios: a massa acumulada de documentos nos órgãos do governo e a questão referente aos documentos digitais, considerando que há uma linha de corte com a implantação do Programa SP Sem Papel* que pretende eliminar gradualmente o trâmite de papel e que adotou o sistema SIGA-Doc, Sistema informatizado de gestão arquivística de documentos – SIGAD, software livre, desenvolvido pelo TRF2.

No caso da massa documental acumulada, certamente há, desde ‘tesouros’ – que são documentos de valor arquivístico e histórico e que precisam ser transferidos para o acervo permanente para preservação e acesso – a documentos que já cumpriram seus prazos de guarda e que podem ser eliminados. Obviamente são massas gigantescas de documentos, se pensarmos no número de secretarias, autarquias e fundações somam-se 89 órgãos, fora as ramificações pelo interior do estado. Esse é um grande desafio que deve ser prioridade do Arquivo Público e, nós, mais do que ninguém, temos que lutar para que essa documentação não se perca.

O outro desafio refere-se aos documentos digitais e eu o dividiria em duas partes: a primeira é o desafio de se garantir a boa produção deles desde sua origem. O Arquivo tem a função de criar modelos padrões e apoiar tecnicamente os órgãos para a garantia do fluxo desses documentos. O segundo desafio é a preservação de longo prazo. Atualmente estamos em uma instituição que é referência, mas que está preparada principalmente para a preservação do documento em papel. Ainda não estamos aptos a sermos o ‘Arquivo Digital do Estado de São Paulo’. Já existem muitos estudos internacionais, mas esse é um grande desafio e a instituição está preocupada em estar atualizada com os estudos para essa preservação digital.

Hoje estamos focados na implantação de um sistema de produção de documentos digitais em todo o estado, o “SP Sem Papel”. Porém, sabemos que no Estado de São Paulo existem outros em utilização. Como preservar tudo isso que é gerado em outros sistemas? Temos o desafio de pensar como preservar isso em longo prazo, considerando também aspectos complexos, como, por exemplo, existência de bases de dados diversificadas que contêm informações a serem guardadas. Como preservá-las? É um grande desafio do qual estamos conscientes e que a área como um todo deve ter como objeto de debate em torno da definição de diretrizes, orientações e talvez alguns consensos.

*SP Sem Papel: programa do Governo do Estado de São Paulo para reduzir/eliminar gradualmente o trâmite de papel no âmbito da Administração Estadual. Plataforma corporativa para a produção, tramitação, gestão e controle de processos / documentos digitais, que garante a classificação dos documentos no ato de sua produção de acordo com a Política Estadual de Arquivos.

 

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